Textos de apoio à curadoria

Carla Santos Carvalho

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A Leste (na Maia)

Bons ventos trouxeram o projeto A Leste até a BACM. Com eles chegaram promessas de dias soalheiros e simultaneamente de tempestades.

No decurso da Bienal, esta comunidade de afetos, de experimentação transdisciplinar e reflexão crítica, transportou-se do Porto para a Maia. No espaço expositivo, propôs-se criar uma instalação performativa, híbrida e orgânica, que se auto define como um “local de partilha, empatia, multi-pluri-trans”. Foi nesse lugar de fruição, ao mesmo tempo de relaxamento e festa, de discussão e partilha, de exposição e pensamento – em permanente estado de ativação – que decorreram quatro momentos performativos que convidaram à participação da comunidade: um projeto colaborativo dos artistas Leonor Parda e António Manso Preto; uma performance do bailarino e coreógrafo António Onio; uma outra, da artista multidisciplinar FER, cuja prática se move entre a performance, a música e o teatro; e finalmente, a festa, que contou com as participações do artista visual e músico Pisitakun Kuantalaeng, bem como de FER, Onio e Parda.

Ocupando o lugar se transforma o lugar, se transforma o mundo. A Leste na Bienal da Maia foi de alguma forma um epíteto de uma Bienal que se pretende afirmar como um espaço de “utopias realizáveis”.

Afonso Rocha

No último ano, Afonso Rocha (n. 1999) tem vindo a desenvolver o projeto The Garden que se materializa num conjunto de meia centena de trabalhos, sobretudo pinturas e desenhos e, igualmente, fotografias e colagens, compreendendo duas vertentes: a paisagem e a figura humana. À BACM, o artista licenciado em pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (em conjunto com a École Nationale Supérieure des Beaux-arts de Paris), trouxe-nos as paisagens. E as paisagens de Afonso Rocha são fictícias, construídas no estúdio do artista a partir de representações fotográficas de paisagens captadas pelo próprio em diversos locais do norte do país – Maia incluída – mas, igualmente, recorrendo a uma seleção de obras da história da arte, de autores como Cézanne ou David Hockney. Desta conjugação de memória da pintura, mas simultaneamente de imagens fotográficas, nascem as representações ficcionais que aqui se mostraram. 

Afonso Rocha é cofundador do projeto O Bueiro (2021) e integra o Proyecto MAP, tendo participado em exposições em Murcia e Buenos Aires. Em 2023 foi distinguido com o Prémio de Pintura D. Fernando II e com uma menção honrosa Innovate Grant.

Alice Martins 

É impossível separar o corpus de trabalho de Alice Martins de uma ideia de performance. A artista, coreógrafa e performer franco-portuguesa move-se entre esses territórios das artes visuais e performativas, explorando as interseções entre o corpo e os contextos em que se insere, criando formas híbridas – objetos, instalações, performances – nas quais se materializam todos estes elementos. O corpo nas suas dimensões individuais e coletivas, o corpo nos seus múltiplos contextos, quer eles sejam normativos, ambientais, espaciais ou simbólicos. O corpo necessariamente na sua relação com o outro, que simultaneamente se partilha e se confronta com o outro. Com formação académica nas áreas da arquitetura e da dança e práticas do corpo, a artista multidisciplinar cresceu entre Paris e a pequena aldeia de Torres Vedras, Matacães – curiosamente um topónimo com ressonâncias luso-francesas –, e é também este singular cadinho sociocultural que enforma as suas criações. 

Em 2017, funda Objet Global, uma plataforma de pesquisa e experimentação do corpo, do espaço e das linguagens. No ano seguinte cria a companhia-atelier Passion Passion, no âmbito da qual apresenta trabalhos na Fundação Louis Vuitton, no Palais de Tokyo, na Biennale Internationale de Design de Saint-Étienne, entre outros. O projeto Galerie Cussiard, uma galeria itinerante que se propõe transportar a arte de bicicleta expondo os dispositivos que controlam os nossos movimentos, vale-lhe um prémio da Fondation de France. Com o seu irmão Adrien Martins constitui o duo Au carré, que atualmente se encontra a desenvolver um projeto em residência no Centre National de la Danse. Foi precisamente nesta parceria com Adrien Martins que a artista se apresentou na Bienal.

Carla Castiajo

Questionar, inquietar, provocar. A estes verbos – mutações de um estado para outro – se pode associar o corpus de trabalho de Carla Castiajo (n. 1974). A artista, que tem o cabelo humano como principal matéria do seu fazer artístico, constrói a sua prática no espaço intersticial de uma série de antonímias: atração/aversão, belo/horrível, coincidência/desfasamento ou vida/morte. Os materiais orgânicos de que se compõem as obras de Castiajo, concretamente os que aqui se apresentam, desde logo o cabelo, revestem-se de um carácter metonímico, ou como nos ensinou Rosalind E. Krauss, de um carácter indicial [1] . Estes vestígios indiciais, os cabelos, os pelos púbicos, são formas de estabelecer uma presença, que é simultaneamente uma ausência, dir-se-ia. Ao explorar estes materiais, Castiajo pretende refletir sobre questões do nosso tempo, que são simultaneamente questões de todos os tempos. Ao construir objetos artísticos – quer sejam joalharia, o seu medium primordial, quer sejam escultura – cuja matéria base é um elemento orgânico que acompanha a existência material do sujeito, mas que lhe sobrevive, a artista portuense convoca uma das preocupações mais recorrentes do humano, a finitude. A estes objetos não é também alheia uma certa ideia de hibridismo, na medida em que a joalharia pode ser escultura, a escultura pode ser joalharia. Recentemente, a artista integrou o bordado na sua prática artística e, nesse contexto, realizou na BACM um workshop em colaboração com a Associação Artes Criativas da Maia.

[1] Rosalind E. Krauss, “Notes on the index: part 2”, in The originality of the Avant-Garde and other modernist myths, (The MIT Press, 1986), 211. 

Carlos Trancoso

O olhar perspetivado no trabalho de Carlos Trancoso (n.1989), é primordialmente um olhar fotográfico. É a partir dele que o artista multidisciplinar questiona as formas como o ser humano se relaciona com a tecnologia, criando imagens sem câmara, cruzando diversos meios com imagens geradas por computador.

Operando nas fronteiras entre o documental e a ficção, Trancoso questiona os padrões estabelecidos de criação imagética nas sociedades hodiernas. 

Na Bienal da Maia, o artista ultrapassou os limites da bidimensionalidade ao criar objetos tridimensionais, com recurso à impressão 3D. Refletindo sobre o conceito de documento digital, em duas vertentes, enquanto veículo de informação e simultaneamente como testemunho de comportamentos isolados num cenário virtual, a série Backup, que aqui se apresentou, usa a duplicação, a cópia, enquanto mecanismo de poder, transformando-a dessa forma em protocolo. Os trabalhos de Trancoso iteram a ideia de que, na era digital, o “direito ao esquecimento” é uma aporia inultrapassável. 

Além da série Backup, apresentaram-se no espaço expositivo do Fórum publicações realizadas pelo artista e podemos, igualmente, observar alguns dos seus trabalhos na rede de mupis da cidade. In situ, propõs-se, num primeiro momento, fotografar artistas e outras pessoas envolvidas na Bienal, trabalhos que após a impressão, recorte e montagem adquirem uma natureza tridimensional. Esse efeito transformador, do “bi ao tri”, foi igualmente experienciado pelo público num workshop

Diogo Nogueira

O projeto artístico de Diogo Nogueira (n.1999) tem um carácter autoficcional, no qual reflexões e elementos autobiográficos se cruzam com uma investigação em torno de temas basilares da história da arte ocidental, concretamente dos seus mitos fundadores e da forma como eles se repercutem na contemporaneidade. O artista, licenciado em pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, refere-se à sua prática como uma “auto-mitologia” que pretende, simultaneamente, constituir-se como uma espécie de “mitologia queer”. Especificamente no caso da obra que aqui se apresentou, Lutas são feitas fora de casa, senão fica tudo sujo, cujo meio primordial é a cerâmica – mas cujas origens são a pintura e o desenho – o artista usa como referência as gravuras rupestres de Ardegães, bem como alguns objetos cerâmicos datáveis da Idade do Cobre, (partes integrantes do sítio arqueológico, localizado em 2004, no âmbito da Carta Arqueológica do concelho da Maia) e, concomitantemente, todo um referente imagético contemporâneo, pessoal e coletivo, que se reifica nesse conjunto cerâmico, do qual emana uma narrativa necessariamente ficcional que interpelou o visitante da Bienal. 

Diogo Nogueira é membro fundador do projeto O Bueiro (2021), e, atualmente, é artista residente no Clube de Desenho.

Inês Coelho

Inspirado em aspetos particulares do quotidiano, o fazer escultórico de Inês Coelho (n. 1996) tem um carácter marcadamente lúdico e onírico, mas simultaneamente desafiador das convenções sociais, desde logo, as que dizem respeito a questões de sexualidade. 

Nesta exposição apresentou-se um conjunto de obras – escultura e instalação – quer no espaço expositivo interior, quer no exterior. A artista recorreu a materiais tão ecléticos quanto o cimento, o ferro, o latão, o espelho, a pasta de papel, o serrim, a madeira e um outro, o mosaico cerâmico, que tem sido uma presença constante no seu trabalho. Uma das suas peças fulcrais nesta exposição, pode dizer-se, é Sad disco (2022). Uma bola de espelhos, representando duas faces tristes. Uma espécie de lose-lose situation que por antítese se inscreve precisamente nesse objeto de carácter lúdico, a bola de espelhos, que inevitavelmente associamos à ideia de festa. A obra e as suas antinomias apresentaram-se num espaço expositivo central que durante a Bienal foi precisamente sinónimo de comunidade, de festa e de partilha. 

Inês Coelho (n. 1996) é licenciada em Artes Plásticas/Escultura, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e pós-graduada em Multimédia/Cultura e Artes, pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. 

Abel Mota

A prática artística de Abel Mota (n.1999) é, por natureza, hedonista. O prazer do jogo com elementos da pintura, como a cor ou a composição, ressoa dos seus trabalhos, nomeadamente dos mais recentes que podemos classificar como paisagens. O gesto largo, espontâneo e virtuoso ou a paleta cromática vívida são uma presença constante nessas obras, muitas delas realizadas en plein air. Também essa forma de fazer é sinónima da ideia de fruição, da ideia de prazer, inextricavelmente ligadas ao modus faciendi de Abel Mota.

A esta Bienal, o artista licenciado em pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (em conjunto com a École Nationale Supérieure des Beaux-arts de Paris), trouxe-nos precisamente uma série de obras em que a questão da paisagem é central. Desde logo, paisagens minhotas de grande escala, resultado da sua atividade artística mais recente, mas igualmente paisagens maiatas, produzidas especificamente para a BACM.

Em 2021, Abel Mota co-fundou a associação cultural O Bueiro, e nesse ano foi distinguido com o prémio “AJ” da Fundação Millennium BCP.

Pedra no Rim

No princípio era o Bonfim. É nessa freguesia portuense que, em 2018, Fabrizio Matos (n. 1975) e Israel Pimenta (n. 1972) criam o projeto artístico Pedra no Rim. É a partir desse território que desenvolvem uma prática artística peripatética, de reconhecimento e fixação em imagens fotográficas de despojos, de lixo, de objetos encontrados, se se quiser, de naturezas mortas, que são posteriormente materializados em esculturas de cerâmica, constituindo-se como uma espécie de memória do lugar, uma tentativa de contrariar a diluição identitária em curso em alguns bairros da cidade. Uma memória necessariamente sociopolítica, que vagueia entre o belo e o grotesco, salpicada por uma dose de humor e a que não será alheia uma certa aura de mistério. Há nesta dupla artística um cuidado no fazer que replica um cuidado com o lugar, com a vizinhança, com o outro e, por extensão, com o mundo.

Foi também esse trabalho de desvelamento, de revelação do que está escondido ou esquecido, que se apresentou na Bienal da Maia. A alguns objetos trazidos da experiência do Bonfim, somaram-se novos trabalhos. Pondo em prática a mesma metodologia usada no Porto, expandiu-se aqui o campo de pesquisa, adicionando-se novas imagens ao arquivo fotográfico que alimenta o acervo in progress das obras tridimensionais que constituem o projeto Pedra no Rim

Se no início era o Bonfim, hoje o campo de ação estende-se a outros territórios, alargando-se esse arquivo, que é, num certo sentido, um arquivo do humano. 

Sofia Fernandes da Mata 

A joalharia é tudo. Na joalharia cabe tudo. A cerâmica e os têxteis e a fotografia. É desta forma que Sofia Fernandes da Mata se relaciona com o seu fazer artístico.

Ouviu vozes do saber em escolas como a Massana, de Barcelona, ou a Saimaa University of Applied Sciences, na Finlândia. Andou perdida e enfcontrou-se. Em 2017 atravessou o Douro e acabou construindo a casa nas Terras Altas. Colou os ouvidos ao chão, meteu as mãos na terra e na pedra. Sentiu os silêncios. Escutou a matéria. A matéria que enforma as suas peças de joalharia artística – madeira, ferro, linha de algodão, troços de videira, alpaca, ossos – objetos aparentemente frágeis, delicados e simultaneamente poderosos, pois deles emanam forças vitais telúricas. Foram algumas destas obras, com títulos como Na harmonia de certos sons, voltamos ao ventre do universo (2019), que nos convocam para um lugar sem tempo, que se apresentaram na BACM.

Sofia Lomba

O corpo é a matéria de que se faz a obra de Sofia Lomba (n. 1984). Quer seja na sua vertente performática, quer seja através do desenho. E nessa matéria que é o corpo, essa matéria dúctil, em permanente mutação, que se fundem arte e vida. A partir dele, a artista multidisciplinar explora questões de género e identidade, questões de sexualidade e suas representações, sob um viés ecofeminista.

A atenção de Sofia Lomba está particularmente focada na desconstrução do discurso dominante de género e na forma como ele produz e reproduz, como ele cria e condiciona os corpos, sujeitando-os a uma apertada e rígida camisa de forças normativa.

As diáfanas séries de desenhos de grandes dimensões (acrílico sobre seda) envolvem o espetador numa paisagem híbrida, espécie de floresta simultaneamente genitália e floral, entretecida entre a imagética de raiz científica e o imaginário especulativo. Estas imagens são sujeitas a um processo de iteração e transformação, no qual a vagina se faz vulcão se faz vulva se faz clitóris se faz pénis. Foi nestas paisagens híbridas, mas também nas suas práticas performativas que aqui se apresentaram, nomeadamente, a conversa performance em que os desenhos se transformam em toalhas de piquenique, no qual a comunidade foi convidada a participar.

Teresa Bessa e Super Bronca

Artista multidisciplinar e performer sediada no Porto, Teresa Bessa (n. 2000) recorre a meios como a pintura, o desenho, o vídeo ou a fotografia. A sua prática artística assenta, sobretudo, num questionamento contínuo da identidade, nas suas facetas existenciais, queer, feministas e sociopolíticas. O corpo e os seus contextos são, por isso, questões centrais no trabalho de Teresa Bessa. É daí que parte para a construção de narrativas ficcionais e metafóricas das quais ressoam ecos expressivos e surrealizantes. 

Simultaneamente, inicia em 2022, o projeto documental Morto. com inevitável correlação com a imagem de marca do município Porto. Trata-se de um ensaio fotográfico in progress, acerca dos processos de gentrificação, equacionando problemáticas como a dualidade centro-periferia ou as desigualdades socioeconómicas. Foi precisamente este projeto que Teresa Bessa trouxe à BACM, desta feita investigando e percorrendo as terras da Maia e mapeando as suas idiossincrasias. O trabalho exibiu-se no recinto principal da exposição e nas áreas exteriores, em 16 mupis do município, bem como numa publicação de artista. 

Licenciada em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, em 2020 funda, com Beatriz Vale, o coletivo artístico Super Bronca, com o propósito de desenvolver práticas performativas de raiz experimental precisamente questionando a identidade e os limites do corpo e a sua inserção no contexto sociopolítico. A dupla Super Bronca apresentou-se em concerto na Bienal, com sonoridades de raiz experimental, de que ressoam claramente ecos do rock feminino.

Vicente Mateus 

O som é a matéria vital de Vicente Mateus (n.1996). 

Licenciado em artes plásticas, o artista multidisciplinar e arte educador, desenvolve uma práxis ligada ao desenho, mas sobretudo ao som e às suas plasticidades, encontrando na percussão um espaço privilegiado de expressão. 

A esta Bienal, Vicente Mateus trouxe os seus instrumentos de percussão, quer numa vertente puramente expositiva enquanto instrumentos de uma poiética, quer na sua vertente performática, como veículos de ativação de um tempo e de um ritmo do lugar. O artista concebeu uma instalação sonora para o espaço expositivo, cuja ativação ocorreu em diferentes ocasiões no decurso da Bienal, desde logo, no dia inaugural, bem como um trabalho vídeo que foi exibido na mostra online e uma publicação. Todas estas peças constitutivas do projeto expositivo ampliaram e complexificaram as ideias de experimentação e investigação da plasticidade do som que são transversais ao trabalho do artista e, que nalguns momentos, convidaram à participação do espetador, até porque, não esqueçamos, ele é também arte educador. Vicente Mateus, apresentou-se, igualmente, em concerto a 17 de junho, com André Silva, com quem constituiu recentemente o duo OLMO. É atualmente artista associado da Sonoscopia, uma estrutura de criação, experimentação e reflexão a partir do som. 

Mariana Barrote

Caudal rítmico no leito opalino (2023), essa nave do futuro da qual ecoam tempos passados, é peça central, do conjunto de trabalhos que Mariana Barrote (n. 1986) apresentou na BACM. Doutoranda em Artes Plásticas na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, a artista desenvolve uma pesquisa que reflete sobre as políticas de representação do corpo a partir dos seus processos evolutivos e sistemas de classificação. O corpo e as suas transformações ancoradas em memórias despoletadas por gestos, gestos iterados no espaço e no tempo, o corpo no seu campo expandido. É dessa matéria que se faz essa nave-sarcófago opalina, encapsulando vestígios de um corpo só imaginado – uma máscara, uma braçadeira, um par de mãos entrelaçadas repousam no topo do artefacto. O tempo suspenso é interrompido por um conjunto de desenhos cravados a goiva em folha de silicone, observáveis nas faces laterais da obra, bem como nos já referidos vestígios. Sobre eles afirma a artista: “Como a nossa pele, onde se inscreve um tempo anterior ao da nossa forma, literalmente, a superfície da peça está inscrita, na sua maioria. As paredes têm relevos com desenhos de sequências de corpos e movimentos, muitos deles partiram da observação do arquivo digital que compilei. Todos remetem ao corpo, à sua replicação, desmultiplicação”. Se por um lado esta peça, bem como as colunas que a ladeiam, nos remetem para a ideia de sepulcro, de rito funerário, não é despiciendo o facto delas, simultaneamente, emanar a luz, sinónimo de vida. É neste fluxo entre o que foi/o que é/o que virá a ser que a obra acontece. Nesta exposição mostrou-se também uma série de desenhos a tinta-da-china à qual está subjacente a mesma lógica de repetição e transformação que povoa Caudal…; igualmente se apresentaram três vídeos, parte de uma série intitulada Tour de Main, expressão francesa que suscita uma duplicidade interpretativa que é uma recorrência do trabalho de Barrote.

 

Iñaki Aires

Iñaki Aires (n. 1996) vive e trabalha no Porto, cidade a partir da qual desenvolve um modus faciendi assente sobretudo na tatuagem, essa arte milenar de transformação do corpo. Foi na portuense escola artística Soares dos Reis que Aires se iniciou nesta prática, tendo vindo a colaborar, desde então, com estúdios de tatuagem um pouco por todo o mundo. Neste percurso foi construindo um multifacetado arquivo imagético, que integra a sua iconografia, bem como outros trabalhos gráficos e fotográficos, que usa como base quer para a elaboração de publicações de artista, quer para a transposição para os corpos. 

Na Maia, em jeito de performance, procedeu à tatuagem de um corpo no dia inaugural de uma Bienal que se afirmou precisamente como sendo de formação e transformação, de partilha e debate, convocando várias linhas de pensamento crítico, desde logo, a da identidade. Ora, se o questionamento do corpo em transformação é de alguma forma transversal a muitas práticas artísticas em presença, ele é-o indubitavelmente quando pensamos em tatuagem. A partir do seu arquivo imagético, Iñaki Aires, também aqui trouxe um conjunto de colagens, realizadas a partir de imagens retirada de antigas enciclopédias, desde de o século XVI até aos nossos dias, que desprovidas do seu contexto original e num exercício de alguma forma abstratizante foram aqui justapostas e sobrepostas adquirindo novos significados. 

Yasmine Moradalizadeh 

Yasmine Moradalizadeh (n.1999) é luso-iraniana, artista multidisciplinar e arte educadora. A ascendência cruzada assim enunciada, portuguesa/iraniana, católica/muçulmana, porque é a partir dela que se constrói toda uma poiética. Incidindo sobre questões de identidade, território, arquivo e memória e através de meios como a fotografia, o vídeo ou a performance, a artista recorre a vestígios autobiográficos como forma de autorrepresentação. Esta prática multidisciplinar combina vários domínios: as artes plásticas, em que Moradalizadeh é licenciada pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, mas também a dança urbana que pratica há década e meia ou o curso de piano que realizou no Conservatório Regional de Música do Médio Ave. No âmbito da recente demanda identitária que tem vindo a realizar – quer individualmente, quer em parceria com a sua irmã, a também artista Rebecca Moradalizadeh – Yasmine pesquisou, entre muitos outros, o processo de tingimento de tecidos no Irão e a aprendizagem de práticas artesanais como o bordado, saberes tradicionalmente transmitidos de avós para netas. No espaço expositivo apresentou-se a instalação Waiting for the freedom rising, que surge precisamente na sequência de um trabalho sobre a herança têxtil familiar, após uma viagem realizada ao Irão em 2019. Estes saberes ancestrais da antiga Pérsia e simultaneamente do atual Irão, foram transpostos igualmente para o território da Bienal através um workshop realizado pela artista em colaboração com as mulheres da Associação Artes Criativas da Maia, bem como uma oficina/debate com estudantes do ensino secundário. Neste espaço aberto ao outro, neste espaço de partilha em que se afirma o poder transformador do conhecimento e que atravessou todo o espírito da Bienal, emergiu naturalmente uma forma de ativismo, que neste caso não poder ser separada quer de um questionamento sobre o papel da mulher no mundo contemporâneo, quer de uma ideia de resistência à islamofobia. 

Sofia Leitão

O sangue, a bílis amarela, a bílis negra e a flegma: os quatro humores corporais constitutivos da teoria clássica dos temperamentos, do Corpus hippocratium, humores dos quais, acreditavam os gregos, dependia o equilíbrio/desequilíbrio do humano, são aqui materializados nas esculturas de Sofia Leitão (n. 1977). Mas esses fluídos humanos, ao contrário de provocarem repulsa, apresentam-se antitéticos ao olhar do espetador como refulgentes e vívidos objetos preciosos, aos quais não será alheia a ideia de joia (palavra cuja origem remonta ao francês antigo joie, significando artefacto de valor, fonte de prazer). Recorrendo a materiais como as contas de acrílico e de vidro ou as lantejoulas, a artista opera essa transformação, conferindo a estes humores uma ressignificação, uma nova axiologia. De resto, esta ideia de transformação, de metamorfose, se se quiser, é inerente ao trabalho de Sofia Leitão, consubstanciada aqui, não só nas peças já referidas, mas em todas a que neste palco se apresentaram, quer esse palco seja o chão, quer sejam os plintos onde repousam outras peças, como é o caso das caveiras, vanitas sinónimas da derradeira transformação. Processo que duplamente se reafirma na série Transmutação, um título que por si só é todo um enunciado da leitura que vimos propondo. 

Gustavo Silvamaral 

No último trimestre de 2022, o artista brasileiro Gustavo Silvamaral (n. 1995) desenvolveu no âmbito de uma residência artística, no Porto, o projeto Santo do Pau Oco, refletindo sobre a problemática da mineração aurífera no período colonial e as suas consequências para o território brasileiro, tendo como referencial poético a figura de D. Pedro I (D. Pedro IV, de Portugal) – desde logo, a sua importância no processo de independência do Brasil e simultaneamente a ligação à cidade do Porto. 

Foi precisamente a partir desse projeto que o artista criou as instalações, Golden Shower – Altar para um Santo do Pau oco (2022) e O grande roubo (2022) que se apresentaram na BACM. A primeira, composta de esculturas de barro, papel, madeira e bomba de água, tem como elemento central uma representação do rei/imperador à qual foi subtraído o coração (dela ressoa, aliás, um certo anacronismo: a memória pueril do “soldadinho de chumbo” que já não pode hoje ser de chumbo, aqui general sem exército e sem coração), o polémico coração “deixado no Porto”, enquadrado por esse arco triunfal amarelo dourado, aludindo à talha dourada. Dois pequenos anjos ladeiam a figura do rei e sobre ele largam os seus íntimos fluidos, nesse movimento que o artista designa por golden shower. Ora, é impossível não invocarmos aqui quer a obra Self portrait as a fountain (1966-67) de Bruce Nauman, em que “a problemática da narração do eu está inextricavelmente entrelaçada com a autocrítica estética e a problematização dos meios artísticos” [2], que, por sua vez, é inequivocamente uma citação da Fonte de Marcel Duchamp. Silvamaral transporta-nos, portanto, numa espiral mise en abyme, quer nesta, quer na instalação intitulada O grande roubo, composta por coração de porco em recipiente de vidro, suspenso como se pairasse sobre os comuns mortais e, em fundo, outra vez, o ouro do Brasil, curiosamente representado por cobertores isotérmicos de emergência que, por antítese, não podemos deixar de associar à hodierna tragédia dos refugiados no Mediterrânio. O coração, aqui numa quase literalidade em relação ao real, surge-nos dentro desse recipiente translúcido, com duas alças, em jeito de mala que se transporta para qualquer lado, que se transporta para outra realidade. O ouro desta instalação está intrinsecamente ligado ao amarelo, a cor primordial da prática artística de Silvamaral. Como defende Pastoureau: “Escrever a história do amarelo no Ocidente é também…escrever em parte a do ouro, fértil e difícil, tantos são os domínios em que intervém e os problemas que o seu estudo levanta”. Questionar os limites da pintura, no fundo, é quase sempre disso que trata, quando consideramos um corpus de trabalho a que está subjacente uma ideia de pintura, independentemente do medium que é utilizado pelo artista brasileiro.

[2] Carla Santos Carvalho, “Autoficcção: uma ferramenta heurística de produção e receção crítica da obra de arte”, Dissertação de mestrado não-publicada, (Universidade do Porto, 2022), 31.

Filipa Valente

O projeto de Filipa Valente (n. 1999) Campos Magnéticos: Rede informal de espaços geridos por artistas no Porto, entre 1999 e 2022, propõe-se analisar criticamente “a problemática da relação entre a prática curatorial independente autogerida por artistas e o contexto expositivo institucional e respetiva legitimação simbólica”. A artista/ investigadora e curadora identificou e mapeou os espaços geridos por artistas na cidade do Porto nas últimas décadas, ao mesmo tempo que foi registando o percurso dos artistas que por aí passaram e, por maioria de razão, observando a cidade enquanto ser vivo em permanente mutação. O resultado dessa investigação desdobra-se em múltiplas plataformas. Desde logo, num site “arquivo-vivo”, cujo propósito se enuncia a três níveis: identificar, documentar e divulgar. A participação de Filipa Valente nesta Bienal ocorreu em duas dimensões: uma delas relacionada com a investigação Campos Magnéticos, primeiro em formato expositivo de representação gráfica da investigação, mas também em vídeo, email arte e uma publicação (no caso, o mapa resultante do projeto que permitiu ao espetador uma deriva pela cidade, fazendo o reconhecimento dos espaços mencionados); e, igualmente, na vertente residência artística, no âmbito da qual recorreu a técnicas artesanais ancestrais como o ponto de Arraiolos, o bordado ou a tecelagem como forma de representação de espécies da fauna e flora lusitânica, para desenvolver um projeto que reflete sobre uma questão bem contemporânea, a problemática dos ecossistemas ameaçados, como consequência da ação humana. Como o curador José Maia gosta de afirmar, o trabalho de Filipa Valente presente nesta BACM “tal como a pista de dança [espaço central desta edição], é uma utopia realizável”. 

Mathias Gramoso com Ivy Lee Fiebig e Pedro Moraes

A preocupação com as questões ecológicas, com as alterações climáticas, atravessa a prática artística de Mathias Gramoso (n. 1990), materializando-se em intervenções e instalações no espaço público e em galerias, um pouco por toda a Europa. Há um outro traço transversal ao trabalho do artista franco-português, o facto de habitualmente se desenvolver em processos colaborativos. Assim aconteceu na Maia. Na instalação I died once, I can die twice (2023) o espetador confrontou-se com um solo recoberto de cinzas e areias provenientes de incêndios florestais recentemente ocorridos em Portugal, a iluminação reforça a ideia de um cenário pós-apocalíptico. As sonoridades do espaço entrelaçaram-se com registos sonoros dos ventos Iónicos captados por Ivy Lee Fiebig (n. 1992) enquanto navegava no Mediterrâneo. A instalação sonora Lodos & Poyraz, os ventos a que a tradição popular, com raízes na mitologia clássica, também chama “Ventos das bruxas” (por provocarem alterações físicas e psíquicas nos seres humanos), insere-se numa prática que tem conduzido a artista alemã a territórios de pesquisa e construção de atmosferas psicológicas, microclimas reativos e espaços de experimentação em que se equacionam vida e sustentabilidade. Questões que de outra forma estão igualmente presentes no trabalho do artista paulistano, Pedro Moraes (n. 1990). A-B é uma obra que aspira o pó do presente, o pó invisível remanescente da ação humana e filtra-o, para o transformar em arte. Só que essa transmutação resultante do processo de filtragem das partículas do ar, só se torna possível pela passagem do tempo, é ela que reificará os pigmentos em “pintura”.  É nesta perceção de contrastes e paradoxos que acontece o trabalho de Pedro Moraes. Gramoso, Fiebig e Moraes vivem e trabalham em Berlim.

Movimentos Bruxos

Desde o início dos tempos que a física e a metafísica problematizam o conceito de movimento. Mesmo empiricamente sabemos que movimento é sinónimo de transformação, que movimento é sinónimo de existência. Com desenhos, pinturas, esculturas, objetos mecânicos e falantes, sons e cheiros, sombra e luz, o coletivo artístico Movimentos Bruxos constrói instalações imersivas e cinéticas ou, melhor dizendo, constrói cenários cuja a ativação só se torna possível na deriva do espetador. Estas paisagens cinéticas surrealizantes, onde se cruzam realidade e fantasia, onde a trivialidade do objeto quotidiano se expande e se transfigura e, finalmente, se faz arte, são obra do coletivo constituído por Carlos Lima (n. 1970), Dora Vieira (n. 1991) e João Alves (n. 1983) e que, nesta circunstância, contou também com a participação do artista transdisciplinar Ruca Bourbon, a.k.a. Doutor Urânio. Do trabalho coletivo destes artistas ressoa essa paródica “ciência das soluções imaginárias” inventada por Alfred Jarry, a Patafísica, que no pós-guerra inspiraria a criação do Colégio da Patafísica, instituição de cariz anti académico, que reuniu inúmeras personalidades da literatura e das artes, muitas delas com ligações aos movimentos surrealistas. E se o propósito do Colégio era dedicar-se, na senda de Jarry, aos estudos eruditos sobre ciências inventadas e inúteis, também o coletivo Movimentos Bruxos parece mover-se nos territórios para além da física e da metafísica. A sua práxis parece edificar-se nos territórios patafísicos, essa “ciência do particular” de que nos fala Jarry, que se propõe examinar as leis que regem a exceção, as leis que regem esse outro universo que não é este, mas que nesta circunstância é. 

Miguel Ângelo Marques 

Se é verdade que é recorrente um artista ir construindo o seu arquivo pessoal imagético – veja-se como ainda recentemente foram descobertos dois cadernos de desenhos de viagens, de Eugène Delacroix, que desvelam a influência desses esboços e anotações no processo de trabalho do pintor oitocentista francês – é também certo que a importância desse arquivo se manifesta de modo diferenciado nas práticas artísticas. No caso de Miguel Ângelo Marques (n. 1994), artista cujo corpus de trabalho assenta na pesquisa de relações entre imagem e signo, esse arquivo, no caso constituído por um vasto reportório imagético pessoal e coletivo, intimamente ligado à noção de memória, assume particular relevância. É a partir dele que constrói as suas narrativas visuais, fundamentalmente através da pintura, mas também com recurso a outros meios como sejam o vídeo, a gravura ou a escultura. É esse, aliás, o caso da sua participação na Bienal. Partindo de uma investigação histórico-sociológica do território maiato – os característicos bordados, as gravuras medievais em pedra ou as icónicas gravuras neolíticas/calcolíticas de Ardegães, entre outros – expandiu o seu acervo de imagens e a partir dele produziu novas pinturas e os baixos-relevos que se apresentaram nesta mostra, a que se juntaram trabalhos anteriores. Uma menção ao dispositivo expositivo escolhido para exibir os trabalhos de Marques: grandes painéis de dupla face, em que as obras se dispõem em conjuntos, sugerindo leituras individuais e, simultaneamente, coletivas e que, do ponto de vista formal, nos trazem reminiscências do Bilderatlas mnemosyne (1924-29) de Aby Warburg. Tendo em mente o conceito de partilha e das suas possibilidades enquanto instrumento de transformação, denominador comum de todo este certame, Miguel Ângelo Marques orientou uma oficina de desenho destinada a crianças do 1º ciclo. 

Tiago Loureiro

O vermelho é a cor primordial, a cor arquetípica, a primeira dominada e reproduzida pelo ser humano, como bem nos lembra Michel Pastoureau na sua história das cores. E é de vermelho (e suas nuances), essa cor que a ciência oitocentista haveria de classificar como primária, que se veste parte do fazer artístico de Tiago Loureiro (n. 1995). Mestre em Práticas Artísticas e Contemporâneas pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Loureiro construiu no território expositivo da Bienal uma instalação, que era simultaneamente um espaço performativo. Uma estrutura pentagonal recoberta de rodapés e amarra fantasmas, enormes e pesadas toalhas retangulares, da qual ressoavam ideias de escultura, mas sobretudo de múltiplas possibilidades de forma e movimento, por isso, necessariamente, de teatralidade. Recorrendo a objetos e figurinos inspirados no seu quotidiano, o artista criou personagens que se movem num universo místico, ritual e, por maioria de razão, onírico. No decurso da Bienal, as possibilidades dos corpos em movimento enquanto transformadores do espaço foram exploradas pelo artista em oficinas de movimento que apelavam à participação da comunidade.

Maria Paz e Leonor Arnaut  

A liberdade é um mistério,

todo dia se decifra

todo dia se disfarça

O trabalho de Maria Paz (n. 1998) é sobre a liberdade, sobre a emancipação. A emancipação do corpo, a liberdade de género, a liberdade de ser. E é sobretudo na escultura, em objetos cerâmicos ou de pedra, que se materializam as suas formas híbridas fantásticas, de cariz abstratizante, que, no entanto, não parecem desligadas de uma certa ideia de pintura. Esse fluxo contínuo entre a pintura e a escultura, presente no corpus de trabalho da artista é, por exemplo, observável na obra bandeira, pintura sobre tecido, cuja dimensão substancial e a forma como se dispõe no espaço acaba por lhe conferir um caráter para além do bidimensional. A relação torna-se mais evidente em trabalhos como as monstras, nos quais a pintura se torna efetivamente tridimensional. Aí, talvez mais do que em qualquer outro das peças que se apresentam nesta exposição, vêm à superfície os questionamentos de Maria Paz: a afirmação do corpo emancipado, intersexual, nutrício, vital, desmultiplicado, livre. Foi, de resto, a partir desta instalação, composta por criaturas orgásticas, que Maria Paz construiu um diálogo com a arte vocal de Leonor Arnaut (n. 1996), que se materializou numa instalação sonora e num concerto performativo que Arnaut fez no primeiro dia da Bienal. Um diálogo que foi também um convite à transmutação dos corpos e dos sonhos para um novel território habitado por seres fluídos e livres. 

Náhir Capêlo e Henrique Costa 

Fecha os olhos e vê.

Um raio de luz atravessa o espaço arquitetónico e dá uma nova visibilidade ao jardim de inverno do Fórum. Dessa intervenção transformadora, imaginada por Náhir Capêlo (n. 1994), emerge uma paisagem enformada pela instalação sonora criada pela artista em parceria com Henrique Costa (n. 1995). E se a paisagem é, por definição, um construto humano, nesta circunstância é-o duplamente pois os seus limites são as paredes de betão do edifício. A arquitetura controla e define o espaço que é aqui o lugar da natureza, um lugar que simula um outro lugar, aquele em que a natureza, alheia à intervenção humana, se regula a si mesma. Sobre o processo, afirma Náhir Capêlo: 

Após algumas visitas ao espaço notámos características sonoras próprias da situação de condensação. As transformações da matéria para estado líquido produzem esporádicos sons de gotas a cair sobre as grandes folhas das plantas tropicais. Estes ritmos têm sido a base do ambiente sonoro que estamos a produzir, cruzando-os com alterações feitas a partir de diversos sintetizadores.

O questionamento das relações entre o mundo natural e a tecnologia estava igualmente presente nos trabalhos que se exibiram na rede de mupis da cidade, resultantes de um projeto de investigação intitulado Ela não se move: o que escapa à história também existe realmente. Aí, Capêlo problematizou a dicotomia natureza/cultura e a forma como ela é mediada pelas tecnologias digitais. Se, inicialmente, o projeto foi apresentado enquanto instalação vídeo, aqui foram os frames desse mesmo vídeo que se mostraram.

Num outro trabalho, o vídeo A imensidão das coisas (Fez, Marrocos, 2022), 3’ 48’’, um ligeiro movimento panorâmico introduz-nos a um típico casario magrebino. Os gestos de uma jovem rapariga captam a atenção do espetador. A imagem fixa-se num corpo em movimentos improvisados, um corpo livre que explora a relação consigo mesmo e com os objetos que o rodeiam. Náhir Capêlo fez aqui um exercício sobre a linguagem enquanto instrumento de continuidade entre o humano e o não-humano, sobre a linguagem enquanto forma de expressão não exclusivamente verbal ou sequer humana, sobre a linguagem enquanto ferramenta de emancipação. 

April e Léa Castro Neves

April (n.1999), drag queen e artista multimédia, nasceu e cresceu em Curitiba, no Brasil, mas gosta de afirmar que se “aprimorou no Porto”, cidade a partir da qual desenvolve atualmente a sua prática artística. O seu trabalho explora elementos de raiz transformista em articulação com a performance art. Encontramo-nos, claramente, perante um processo de busca e afirmação identitária, esse percurso contínuo em direção ao eu, “como quem vai em direção a uma meta” de que nos fala Foucault, que recorre a mediums como a performance, a música ou as artes visuais. 

Na Maia, o trabalho de April apresentou-se em diversas vertentes: exposição, publicação, workshop, vídeo e email arte. Em termos expositivos, exibiram-se uma série de toalhetes desmaquilhantes que a artista usa no final das suas performances, nos quais ficaram impressos vestígios dos rostos das várias personagens em que se desmultiplica. Imagens que não deixam por isso de ser autoficções de si mesma, retratos de um eu em permanente transformação, em perpétuo aperfeiçoamento. A 17 de junho a artista realizou uma oficina de pintura facial, equacionando precisamente esse processo de transformação do rosto; em agosto, participou na mostra de vídeo com uma obra realizada em parceria com a fotógrafa e videasta Léa Castro Neves (n. 2002); em junho, exibiram-se, na rede de mupis, os registos fotográficos das múltiplas personagens em que April se transforma, captados por Léa Castro Neves. 

Júlia de Luca

O corpo caminhante de Júlia de Luca (n. 1990) inscreve-se na paisagem num registo do qual ressoa esse momento transformador em que a arte deixa de imitar a natureza para se envolver com a natureza, ou como sustenta Maderuelo, esse momento em que natureza passa a ser “sujeito, processo ou destino do ato artístico” e em que, concomitantemente, esse ato artístico não se constrói “como uma representação formal da natureza, mas com a consciência da perceção das relações entre o homem e o mundo natural”. A poiética de Luca, herdeira de uma longa linhagem de práticas artísticas como a land art ou a body art, afirma-se primeiro como performance na paisagem, recorrendo a vários meios, como a fotografia ou o vídeo, como forma de registar esses momentos performático-narrativos que são, ao mesmo tempo, percursos de pesquisa e descoberta de si mesma. 

 

Em minha prática, observo como meu corpo responde a sentimentos e emoções. Proponho-me navegar em campos internos para trazer de alguma forma o que ainda era obscuro, muito subjetivo ou difícil de me relacionar.

 

Também assim aconteceu na Maia, onde a artista multidisciplinar brasileira esteve em residência. Foram os registos desses percursos performáticos no território maiato que se apresentaram na Bienal: em junho na rede de mupis da cidade e, em permanência, na mostra de vídeo. 

Inês Tartaruga Água e Xavier Paes 

A prática artística multidisciplinar de Inês Tartaruga Água (n. 1994) centra-se nas questões da ecologia profunda, da regeneração radical e da biopolítica. É nesse contexto que se afirma como exploradora de plasticidades sonoras, bem como de práticas colaborativas e participativas no espaço público, alicerçadas numa filosofia DIY. Foi precisamente sob os lemas da partilha de conhecimento e do do it yourself que a artista nos propôs, a 23 de setembro, uma aproximação ao seu projeto ongoing ToxiCity, que recolhe e mapeia os níveis de toxicidade ao ar das cidades, refletindo sob as formas como o Antropoceno está a lidar com a emergência climática. Numa primeira fase, propôs-nos um workshop de criação de um leitor de poluição “noise-disruptivo”, e horas mais tarde, a partir desse trabalho de recolha e mapeamento realizou uma performance, em que se equacionaram as relações entre humano/natureza/tecnologia. Ambas as ações decorreram no espaço Hotelier e no espaço exterior do Fórum, a 23 de setembro. Os objetos/instrumentos auto construídos são recorrentemente usados nos concertos performance do duo formado por Inês Tartaruga Água e Xavier Paes (n. 1994), o artista transdisciplinar que se movimenta entre os campos das artes plásticas, performance e improvisação, a partir de uma essência sonora. Este projeto incorpora, precisamente, todas estas vertentes: trata-se de um duo de música exploratória, criador de paisagens sonoras que vagueiam entre as experiências meditativas, etéreas, a espaços espectrais, e os momentos de explosão/subducção eletroacústica. Inês Tartaruga Água e Xavier Paes apresentaram uma ativação da instalação do Hotelier, a 15 de julho, na BACM.

Susana Chiocca e Pedro André

De improviso, em vésperas do 25 de abril de 2022, a artista multidisciplinar Susana Chiocca (n. 1974) desafiou o músico Pedro André (n. 1983) para uma performance que deveria ocorrer no dia seguinte, no âmbito do evento “Sopa de Pedra”, organizado pelo Café Candelabro. E assim se fez. Sinónimo das coisas que estão vivas, as sonoridades analógicas criadas pelo artista sonoro e visual Pedro André, na circunstância assentes na improvisação, convergiram com a leitura performática de textos escritos por mulheres, realizada por Chiocca. Essa foi a base conceptual para Ensaio aberto, o projeto musical-performativo que se apresentou no auditório do Fórum: a música produzida por André desenvolve-se em processos simultâneos de harmonia e dissonância com os textos mais ou menos poético-literários, mais ou menos políticos, mais ou menos provocatórios, selecionados por Chiocca para este momento performático, de autoras como Djiaimilia Pereira de Almeida, Olga Novo ou Cláudia R. Sampaio. Sem ensaios, sem rede. Simplesmente fazendo acontecer. Esta prática próxima da spoken word não é alheia ao modus faciendi de Chiocca, artista e performer que se vem afirmando nas últimas duas décadas. Desde logo, com o projeto incontornável Bitcho, essa “figura ambígua, meio ancestral com um híbrido folk, que dá corpo a um animal feminino”. O bitcho múltiplo e livre que é, de alguma forma, epítome do trabalho da artista. Pedro André é, desde 2020, compositor residente do Museu da Cidade do Porto e participa, frequentemente, como artista sonoro em projetos colaborativos de artes plásticas e performativas. 

Nenaza

Nenaza (1994) é uma artista drag e DJ que se movimenta entre Vigo, Porto e Madrid. É neste território triangular que emerge o universo onírico e fantástico das fadas, que se constitui como alicerce conceptual de toda uma prática artística orientada para as questões de género, desde logo, o género feminino. Mas esse universo fantástico, exteriorização e exacerbação de um certo modo de ser feminino que habita, de formas diversas, todos os sujeitos, não deixa de ser contaminado por cenários mais sombrios, indelevelmente marcados pela violência e pela imagética punk. Na Maia, Nenaza realizou um workshop de criação de personagens drag, centrado nas questões do movimento e nos códigos gestuais dessas personagens. Também se apresentou na vertente DJ, com a promessa de ritmos vibrantes – do reggaeton ao funk, da eletrónica ao techno, passando pelo hyperpop e pelo ball – capazes de transportar os corpos para mundos imaginários. 

 

 

Hugo Adelino

Numa edição da Bienal em que a ideia de transformação e desmultiplicação do eu foi de alguma forma transversal às práticas artísticas que nela se desvelaram, não deixa de ser assinalável o facto do percurso profissional e, necessariamente, de vida de Hugo Adelino (n. 1985) ter experimentado uma mudança radical em 2016, quando optou por tornar-se fotógrafo freelancer em vez de seguir o caminho expectável após a licenciatura em optometria e ciências da visão. No fundo, é de uma visão que se fala quando se pensa no trabalho fotográfico que realiza, mas neste caso, de um olhar perspetivado sobre o mundo em que vive. E foi desse olhar, em duas dimensões, que se fez a sua participação na Bienal. Primeiro na qualidade de fotógrafo oficial das exposições e das performances para o catálogo do certame, mas, igualmente, revelando-nos um olhar mais subjetivo, mais livre, se se quiser, materializado num conjunto de imagens fotográficas a propósito do universo da Bienal e que foram exibidas na rede municipal de mupis. 

Nika e Vítor Moreira com Júlia de Carvalho Hansen

Entre o suspiro desejante e a angústia do que não nos pertence, 

o futuro é dos entendidos: os que duvidam enquanto sabem.

Júlia de Carvalho Hansen (n. 1984), poeta, astróloga e editora nascida em São Paulo na década em que se afirmou o pós-modernismo, escreveu para a Bienal o ensaio poético Como se faz um futuro?, no qual problematiza algumas das questões que vêm assombrando a geração herdeira do pós-modernismo: humano versus natureza ou a vida em um mundo saturado de tecnologia. No seu caso, também especificamente as formas como a astrologia se entrelaça com as existências:

O cerne de um búzio carrega mais mensagens

do que eu e você nos nossos históricos de whatsapp sem dúvida

uma trepadeira escalando um muro sabe melhor o que fazer.

Nika (n. 2001) e Vítor Moreira (n. 1997), artistas multidisciplinares, com uma prática sobretudo no domínio do audiovisual e multimédia, partem precisamente do texto de Júlia Carvalho Hansen para traçarem o seu próprio “mapa astral”. A partir deste ensaio poético-ativista da escritora brasileira, a dupla criou uma obra – vídeo mappping projetado numa esfera suspensa que, aliás, dialogou com outras esferas presentes no espaço expositivo – que reúne um conjunto de imagens de diferentes proveniências cujo denominador comum é a água. A água, defende Hansen, de que precisamos para fazer futuro

Mariana Couto

Mariana Couto (n. 2001), designer de interiores, foi desafiada pelo curador José Maia a criar alguns dos dispositivos expositivos da BACM (sobretudo nos casos em que os artistas não criaram soluções próprias). Mais do que desenvolver estruturas expositivas para uma determinada mostra, pretendia-se sobretudo imaginar soluções que permitissem uma efetiva relação entre a obra e o observador e que esse trabalho, que convoca para o espaço expositivo outros materiais, sobretudo reciclados, que acrescenta camadas aos trabalhos que são exibidos, estabelecesse, uma linha de continuidade entre o conceito de uma Bienal que caminha em direção ao futuro, com os pés assentes no presente, as obras dos artistas que a consubstanciaram e os espetadores que, finalmente, a ativaram. Nesse sentido, Mariana Couto desenhou dispositivos para a exposição de trabalhos de artistas e coletivos como, Pedra no rim, Carlos Trancoso e April ou Diogo Nogueira, Sofia Leitão e Mariana Barrote. Estruturas diversas, que dialogam obviamente com o espaço, mas que têm, essencialmente, a obra e as formas de expandir as relações entre a obra e o espetador. 

Mariana Camacho

Há algo em nós que estremece quando escutamos, com o corpo todo, a voz e suas plasticidades de Mariana Camacho (n. 1993). Da música erudita ao jazz, da pop à world music, a cantora e performer madeirense move-se livre entre e tipologias musicais e formas de fazer. Fundindo, criando, mesclando, improvisando, transformando. A somar a múltiplas, ecléticas e transdisciplinares experiências colaborativas, em duos, em trios, em coros, a artista criou, em 2019, a sua “banda de uma mulher só”, na qual desenvolve uma pesquisa em torno da improvisação, da intertextualidade, da exploração vocal e da composição em tempo real, recorrendo a loops e teclados. Neste projeto one woman band, Mariana Camacho convoca amiúde o universo da música tradicional portuguesa, que incorpora e transforma, devolvendo-nos uma paisagem sonora infinitamente mais vasta. Em vésperas de lançar um álbum a solo, a cantora apresentou-se em concerto no pequeno auditório, a 23 de setembro. 

José Filipe Alexandre

José Filipe Alexandre (n. 1997), mestre em Design de Comunicação, tinha como horizonte a conceção da identidade gráfica da BACM, a Bienal que vem caminhando e que caminhando se transforma, caminhando se desmultiplica em possíveis caminhos futuros. A imagética que resultou do seu trabalho reflete essa multiplicidade constitutiva. Por um lado, mergulha nas formas tradicionais, nos modos de fazer ancestrais, na manualidade, – especificamente, nos bordados maiatos e minhotos, cuja influência, aliás, reconhecemos nas práticas de vários artistas que nesta circunstância se desvelam –, mas que simultaneamente incorpora o pixel, esse menor elemento-imagem, que inevitavelmente associamos a uma contemporaneidade digital, iterada, inelutável. Com algumas particularidades. No espaço expositivo os textos de paredes foram substituídos por imagens, quase murais, criados por José Filipe Alexandre. Desde de logo, o que recebeu o visitante na entrada nascente do edifício, que nos remetia para uma representação/projeção do território da Maia, mas igualmente para um conjunto de outras imagens que, a seu modo, forneceram pistas ao espetador acerca dos diferentes núcleos e suas temáticas da exposição no Fórum, como sejam, a paisagem, a manualidade, o arquivo/memória, entre outros. Esta identidade gráfica concebida pelo designer disseminou-se pelo espaço público, pois foi também observável na rede de mupis da cidade. 

Hotelier/Paula Lopes 

Não por acaso, o espaço Hotelier instalou-se há uns anos na portuense Rua de Anselmo Braamcamp, um epicentro de projetos artísticos independentes e de pensamento livre. Definindo-se como um “atelier multiversal de experimentação artística contemporânea”, orientado para a reutilização de materiais, o projeto Hotelier liderado por Paula Lopes mudou-se para a Maia, no decurso desta edição da BACM. Constituindo-se, nesta circunstância, tal como aconteceu no espaço-mãe, como um local de partilha, experimentação, reflexão crítica e aprendizagem – a par, aliás, do espaço A Leste – e afirmando-se, igualmente, como casa de acolhimento de projetos artísticos com práticas consonantes. A experiência da “piscina seca”, sala do espaço da Anselmo Braamcamp, cujos pavimento e paredes, parcialmente pintados de azul como se se tratasse de uma piscina, – ironia mordaz da lógica de consumo capitalista, a que não dispensa o “hotel com piscina” –, replicou-se na Maia. Aqui, com recurso a materiais reciclados, desperdícios, aliás. Em fundo, uma paisagem sonora que é, de algum modo, sinónima de liberdade, sons captados enquanto Paula Lopes aprendia a nadar. Foi esse o espaço privilegiado de experimentação, acolhimento de concertos e performances, de projetos artísticos diversos. Tanto na inauguração como no mesmo dia em que Inês Tartaruga Água e Xavier Paes aí apresentaram a sua instalação, e num mesmo contínuo conceptual, de futuros possíveis, Paula Lopes convidou-nos para uma performance gastronómica, em linha com o trabalho que vem desenvolvendo no Hotelier: experiências gastronómicas de aprendizagem e partilha, de raiz vegan, sempre com a reutilização em mente: “Interessa-me a tentativa e erro e, essencialmente, a imperfeição, mais do que o seu contrário”, diz-nos a criadora. As suas explorações gastronómicas, ativadas pela participação do espetador, são enunciados de um modo de estar no mundo, enunciados de um modo diferente de pensar o mundo: ecológico, sustentável, escutando as respirações da terra.

Henrique Apolinário/Sirte

Artista transdisciplinar, ator, músico, performer, educador, engenheiro de som. É longa a lista de práticas (podia ser mais longa, talvez) que Henrique Apolinário (n. 1994) tem vindo a desenvolver na última década. De todas elas ressoam denominadores comuns. Por um lado, o questionamento das correlações entre a performatividade dos sons e dos corpos, por outro, e do ponto de vista especificamente musical, o enfoque no desenvolvimento de técnicas experimentais de composição, improvisação e direção musical. Numa afirmação que é todo um enunciado, o artista refere que a sua práxis é uma busca reiterada de “estados psicossomáticos imersivos, procurando uma ligação anímica dos corpos através de pulsações partilhadas, sinestesia e comunicação não-verbal”. Cruzamentos, interseções, apropriações, improvisações, experimentações, conexões, afinidades. De tudo isto se fez o concerto performance em que Apolinário se apresentou com um novo projeto. O ensemble Sirte é dirigido pelo próprio, que é também violinista, contando com Beatriz Rola, em viola de arco, António Feiteira na percussão e David Machado na eletrónica e processamento de áudio em tempo real. O concerto, em que o ensemble se propôs amplificar as fontes acústicas “com precisão sónica”, transformando o som num instrumento que se acrescenta aos demais e, simultaneamente, funciona como peneira de todos os outros, apresentou sonoridades “hipnóticas, densas, repetitivas” abrindo um espaço à possibilidade da dança. 

Clara de Cápua

Duas projeções simultâneas, duas narrativas paralelas convergem para um desfecho anunciado. O movimento perpétuo das marés, a passagem do tempo ou lembrando o que nos ensina Didi-Huberman, “diante da imagem estamos sempre diante do tempo”, pois perante a imagem passado e presente não cessam de se reconfigurar, não cessam de se desmultiplicar. Numa das imagens em movimento que agora observamos, um corpo abandona-se à beira mar e há de ficar lentamente submerso pela subida da maré, até se desvanecer nas águas atlânticas de Coruripe; na outra que corre simultânea, à medida que a maré baixa, uma pequena embarcação de pesca, sem mestre, qual navio fantasma, vai acostando até encalhar ou “dar em seco”, como diriam os pescadores deste lado do atlântico. Este exercício fílmico, intitulado Naufrágio (2021), da autoria de Clara de Cápua (n. 1984) incorpora os temas recorrentes da artista brasileira. Foi com ele que participou na Bienal, concretamente na mostra de vídeo. Atualmente doutoranda da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Clara de Cápua é licenciada em Artes Cénicas e Mestre em Artes. A sua práxis desenvolve-se precisamente nestes dois domínios: as artes performativas e as artes visuais, explorando questões de temporalidade, as tensões ausência/presença, bem como as pulsões narrativas que emanam da imagem. Recorre a diversos mediums como o desenho, a gravura, a pintura ou o vídeo. 

Bug Snapper

Logo nos planos iniciais de Greenhouse (2023) – título de um vídeo realizado para uma música homónima – transparece a influência formal que o cinema experimental do norte-americano Stan Brakhage (1933-2003) exerce neste exercício de Bug Snapper, projeto a solo do músico, produtor, DJ e artista multimédia Rui Santos (1998). Se pensarmos em alguns planos da curta-metragem The wonder ring (1955), como é o caso dos travellings de câmara ao ombro, só para dar um exemplo, essa marca, aliás reclamada pelo artista portuense, torna-se evidente. Claro que a imagética também essencialmente abstrata de Bug Snapper é um produto do seu tempo. Do ponto de vista visual, o artista recorre a uma mescla de imagens digitais de satélite e imagens geradas por inteligência artificial, com o propósito de acompanhar uma composição musical eletrónica. O trabalho tem como referência estética, explica o artista, a glitch art, ou seja, a identificação de falhas, de erros, de distorções e a sua incorporação propositada nas sequências, gerando movimentos rápidos abstratizantes. Este trabalho Bug Snapper exibiu-se na mostra de vídeo. O artista fez igualmente uma performance enquanto músico e DJ. Se o seu trabalho na banda Cat Soup se centra no rock instrumental e no pós-rock, já o percurso que vem percorrendo a solo – que deu origem a dois EP, um single e ao álbum Neptune Recreation Center (2022), tem uma essência eletrónica, com faixas mais rítmicas e dançáveis, outras próximas da ambient music, cujo elemento comum é uso de sintetizadores. 

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Conversa com o curador José Maia

Felícia Teixeira & José Maia

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Por Felícia Teixeira

Editado por Guilherme Sousa

 

Felícia Teixeira: Esta edição da Bienal de Arte Contemporânea da Maia expande o trabalho realizado na anterior. Podes explicar de que forma, e também o que as distingue? 

 

José Maia: O tema da edição anterior era a ágora. Assim como na ágora cada um expunha o seu pensamento, tínhamos presente a ideia do artista que expõe e partilha a sua obra com os outros cidadãos. A atual edição dá continuidade a essa ideia. É uma bienal que agrega muitas áreas: artes plásticas, videoarte, cinema, música, som, arte digital, design, literatura, gastronomia, astrologia, arte educação, investigação, arquitetura de espaço expositivo. É também uma bienal sem fronteiras, onde nos encontramos com a migração, dando palco a artistas portugueses, luso-brasileiros, luso-franceses, luso-iranianos, brasileiros e alemães.  

 

A exposição coletiva central acontece no Fórum da Maia e daí expande-se para o espaço exterior circundante, para as ruas do município, para a internet e para a televisão, numa parceria com o Canal 180. Todos estes espaços são reconhecidos como espaços de criação. A principal diferença para o ano anterior é que nessa altura tivemos uma percentagem muito significativa de obras digitais. Durante o confinamento, os espaços da web ajudaram-nos a viver melhor e passaram a ser habitados por obras de arte. Naturalmente, era para aí que os artistas estavam a criar. 

 

Mas a pandemia também foi um choque comunitário e provocou uma suspensão dos sentidos. O desafio passa por, como defende Daniel Innerarity, pensar a vida social e o seu governo de forma menos mecanicista e mais assente no modelo da complexidade biológica. Passa por trabalhar a comunidade, não só de seres humanos, mas de todos os seres vivos, e avançar sistemas ecológicos que provocam “desequilíbrios estáveis” ou “harmonias discordantes”. Ficou ainda mais claro, depois da pandemia e da instabilidade crescente a partir de 2020, que a política está em tudo. Por isso chamamos a esta Bienal mundos como o artivismo, os feminismos plurais e transdisciplinares, a democracia complexa, o faça você mesmo. Como acontece na biologia evolutiva ou na neurologia, não basta entendermos os componentes, temos de estudar como interagem entre si, é isso que a Bienal propõe com esta diversidade de temas e universos conceptuais.

 

A diversidade também acontece ao nível dos espaços (uma vez que a Bienal se expande além do Fórum da Maia) e do programa (que é heterogéneo e estende-se no tempo). 

 

Sim, estamos presentes não só no espaço da galeria, onde acontece a exposição maior e muitas outras atividades, mas também nos espaços circundantes ao fórum, sítios em várias freguesias da Maia. Os espaços da web são também espaços desta Bienal, com a mostra de vídeo online e o envio de criações por e-mail (num diálogo com a mail art). Tiramos o e-mail do campo do trabalho e trazêmo-lo para a arte, dando-lhe um novo imaginário. Todos são espaços de partilha. Lugar, paisagem e território — todos são equacionados nesta Bienal. Queremos transformá-los, enchê-los com esperança, potenciar a qualidade de vida, expandi-los. Criar espaços da sensibilidade, convidar a ver com o pensamento sensível. 

 

O programa vai desde a exposição coletiva no fórum, às criações online, intervenções no espaço público (como os MUPIs), residências artísticas, concertos, performances, experiências de degustação, conversas, debates, visitas orientadas, oficinas, a criação de um arquivo, não só nesta publicação como no site e nas redes sociais. Ao longo da Bienal os espaços da web não são apenas espaços de divulgação, são também espaços de apresentação, criação e expressão artística. Em termos programáticos, a Bienal foi organizada com 4 momentos de relevo: a inauguração e 3 dias que, nos meses seguintes, concentraram um grande número de atividades, explorando ideias ligadas à palavra, à imagem, ao som, à festa e ao convívio. É um programa radicalmente vivo, que defende aquilo que Ailton Krenak diz ser a vida como fruição, como dança cósmica de novas experiências.

 

Tempo, futuro, complexidade… Há várias linhas de pensamento que atravessam este programa.

 

A ideia de futuro é fundamental. Estamos num período muito particular e os artistas ajudam-nos a ver o futuro, imaginam outras realidades. O presente é incompleto e o seu imaginário apresenta-nos múltiplas outras realidades e possibilidades. Graças a eles vamos tendo essas perspectivas de futuro. Em termos conceptuais podemos dizer que temos aqui perspetivas complementares e antagónicas. Mas a verdade é que todas criam caminhos. Foi a partir do pensamento de Maria Gabriela Llansol que chegámos ao título desta Bienal. Ela disse “é para andar que voltei aqui”. E nós adaptámos e adotámos esse seu pensamento — “foi para caminhar que aqui cheguei”. Para Llansol, o futuro é uma origem que se apresenta no presente: pensamentos, imagens, gestos, sons, todos eles de alguma forma dirigem-se para o futuro. Por isso também falamos de utopias realizáveis, futuros possíveis. As obras de arte exigem abertura de espírito e disponibilidade para nos desvendar esses caminhos. 

 

Outra ideia importante é o complexo, a realidade complexa. Ela está plasmada no programa não linear, com áreas artísticas e obras muito diferentes. A exposição central é feita de percursos e caminhos que se cruzam e interrompem, tal como os temas. Várias visões da realidade. Estamos no lado oposto do fácil, linear, imediato. Aqui tudo é mais denso, exigente, colorido. Requer reflexão sensível e sensorial. Como sustenta Daniel Innerarity, a complexidade pode ser um fator de democratização e a democracia deve ser entendida como o regime da complexidade. Ela cultiva a discordância, protegendo a diversidade e a heterogeneidade e privilegiando a gestão da complexidade em lugar da sua repressão. 

 

As práticas convocadas nesta Bienal andam longe de um tempo linear. Há obras cuja prática se estende no tempo e o anula. Outras práticas são rápidas e velozes. Especialmente na pintura, elas atravessam múltiplos tempos, entre passado, presente e futuro. Imagens que requerem de nós muita imaginação. A Bienal assenta nessa força da imaginação e está contra tudo o que a limita, porque acreditamos que a imaginação é essencial para haver esperança no futuro.

 

Essa ideia de caminhar é diferente do andar. O caminhar remete para uma certa ideia de rotina e várias destas obras olham para a rotina de outra maneira.

 

Sim, tens toda a razão. A própria exposição é feita para se experienciar caminhando. Para descobrir, ao andar, as realidades soterradas nas obras que só o futuro desvendará. Temos o caso dos Pedra no Rim, que recolhem objetos encontrados em caminhadas na rua, transformando-os em peças artísticas. Ou da residência do Carlos Trancoso, que trabalhou com as equipas do Fórum da Maia e da Bienal, fazendo-nos olhar para eles de maneira diferente. O discurso sobre os caminhos orientadores da Bienal é importante, pois a dimensão conceptual é a que me faz escolher um determinado artista ou obra. A mim interessa-me olhar para uma obra e ver as referências históricas, artísticas e culturais cruzadas e reimaginadas. 

 

Também acho que hoje precisamos de outros heróis, outras referências. Muitos esforços que empreendemos reclamam essa renovação e por isso a história, a memória e o arquivo são caminhos centrais da Bienal. Queremos refletir sobre os modos como o tempo e a memória (que é do passado e do futuro) se configuram na obra e na realidade. Uma memória do esquecimento, a única que é criativa. Como Terry Cook sustenta, criar um arquivo e trabalhar a partir dele requer um diálogo com toda a história da arte e com a própria produção, acumulação e transformação de imagens e informações. Essas três dimensões alteraram-se e intensificaram-se na era digital e por isso é ainda mais importante questionar as funções da imagem. Entender a sua dimensão estética, política, social e cultural. Explorar o seu potencial de criar estranhamento, deter a nossa atenção, partir para o futuro e, convocando novamente Llansol, só depois perceber que tudo acontece no futuro.

 

Há linhas que norteiam a exposição, incluindo a própria disposição das obras no espaço, que é uma espécie de ensaio visual, uma composição com significado. Questões de tempo, memória, futuro, caminhos que precisam de ser efetivados e reativados. Podemos fazer uma visita, mas a segunda e terceira são igualmente ou mais importantes. Muitas das obras partem da ideia de ucronia. Para mim ela é importante em termos criativos. Imaginemos uma história ou evento que poderia ter acontecido de uma outra forma e não como aconteceu. Os artistas ao proporem isso indicam já um caminho. Podemos dizer que muitas das coisas do passado estão datadas, mas também constatamos que muitas coisas do passado têm de ser revistas. Estão ainda em potencial, não estão de todo esgotadas. Há pensamentos ao longo do século XX e início do século XXI que podem ser revisitados. Um dos caminhos que seguimos é o da palavra “caminhante”. Ela provoca ideias como um texto poder ser um bordado, uma trama infinita. O processo da minúcia exige tempo, quase o eclipsa. É um tempo complexo. O texto pode devolver-nos isso. O texto não só para os escritores, mas para todos os que escrevem. Todos os artistas, incluindo os escritores, avançam com hipóteses de vida e sabemos que o objetivo último é sempre a felicidade humana. Mesmo quando apresentam o oposto, sabemos que reclamam a felicidade. A Fátima Vieira, por exemplo, é uma das utopistas que é mais próxima de nós, do Porto. Ela convoca muitos outros autores num texto por si só autoral, um ensaio que queríamos que fosse criativo, livre e libertador. A pulsão que nos leva a fazer, a atuar numa sociedade passiva, é importante. São várias as situações que nos levam à passividade, aqui exploramos o impulso contrário. A criação de jóias, com uma minúcia incrível, também é representada. Temos duas criadoras de jóias, a Carla Castiajo e a Sofia Fernandes da Mata, que de alguma forma trabalham com o próprio tempo. Fazem no tempo e com o tempo, o que nos remete novamente para o futuro. Apontam para as utopias realizáveis e futuros possíveis.

 

No sentido de uma Bienal que caminha para o futuro, podemos enquadrar o convite aos artistas para organizarem oficinas e serviço educativo. Além de mostrarem o seu trabalho, os artistas contribuem para a educação e criação de públicos e de criadores.

 

Exato, os artistas aparecem enquanto criadores mas também enquanto arte educadores. Alguns são investigadores, mas a própria equipa da Bienal é constituída por artistas, que entram como produtores, curadores, designers gráficos e de interiores, comentadores críticos. Um dos espaços da Bienal, a Galeria D. Manuel, transformou-se numa residência artística, lugar de criação, apresentação e onde se realizam oficinas, workshops e sessões de trabalho. Convocámos a figura de Carolina Michaelis (1851–1925), uma influente pedagoga feminista, que na sua casa na Maia reunia personalidades da cultura e da política (Antero de Quental, Teófilo Braga, entre outros) num ambiente de diálogo e partilha de conhecimento. Sendo uma mulher de causas, destacou-se na luta pela emancipação feminina e infantil através da educação e da cultura. Alguém que, reclamando a escola, pretendia libertar a mulher intelectual e economicamente. Também, dessa forma, convocámos Guilhermina Suggia (1885-1950), a violoncelista que encontrou na Maia o seu refúgio predileto e que se distinguiu pela dedicação ao estudo, ao ensino e à partilha. Foi com estas e outras referências que imaginámos estes campos de formação, investigação, criação e partilha. 

 

É importante frisar esse ponto, porque as residências mantêm-se ativas durante toda a Bienal. Continuamos a ter artistas em residência mesmo depois de estes exporem os seus trabalhos. Isso mostra que a intenção da Bienal é de desenvolvimento, de dar continuidade ao que os artistas fizeram até aquele momento.

 

Não são apenas criações para apresentar agora em espaços expositivos ou no exterior, são criações que se destinam a futuras mostras, ou que permitem aprofundar, investigar. E porque se aprende muito vendo, estes espaços estão abertos ao público, que os pode visitar e ali contactar diretamente com os artistas, sabendo que aquelas obras serão apresentadas noutras latitudes, transportando consigo o lugar onde foram criadas, a Maia.

 

Há ainda o modelo de ativação das instalações. Todas elas proporcionam um contacto direto do criador com o público. Este pode ser um público vasto, que se vai juntando casualmente, e pode ser um grupo organizado que realiza estas atividades programadas. São atividades muito diversas na prática artística e no contacto com o fazer, que também se destinam a grupos distintos. Esta é, na verdade, uma Bienal de arte jovem. Mesmo alguns artistas não sendo jovens no sentido literal, pertencem a coletivos ou apresentam projetos artísticos recentes. Por exemplo, no campo do desenho o Miguel Ângelo Marques trabalhou com crianças, num desenhar que não se limita à mão, ao riscador e ao suporte. 

 

O bordado aparece como uma herança da Maia, a partir da exposição de uma grande bordadeira e artista, a Dona Helena. Vários artistas contactaram com esse trabalho e abordaram-no nas suas intervenções, como a Carla Castiajo, que já tinha trabalhado no tema anteriormente. A Yasmine Moradalizadeh, a partir do bordado iraniano, realizou um workshop com um coletivo de artistas mulheres da Associação das Artes Criativas da Maia. O que está ali a ser dito é dito por todas, não é individual, funciona como um coro, especialmente na apresentação em formato performance. Se secundarizarmos práticas como o bordado, secundarizamos o feminino e este trabalho da Yasmine apresenta um feminino que, como reclama Maria de Lourdes Pintasilgo, não é complemento, nem sucedâneo, nem propriedade, nem dependente de outro ser humano — um ser humano de pleno direito. 

 

Noutros campos, a Inês Tartaruga Água criou instrumentos que deteta e interage com os sons do espaço envolvente, e o Tiago Loureiro concebeu uma ativação da sua escultura arquitetónica que se expande pela intervenção do artista ou do público. A Nenaza aprofundou o universo drag, múltiplo, plural e diverso. A April fez um workshop de pinturas faciais. Convocaram-se para a galeria lugares como a pista de dança — tal como as igrejas estiveram em catacumbas e um dia ascenderam a catedrais, queremos elevar esses espaços do underground, num movimento de libertação. Todas estas ações reconhecem a diversidade do outro e tornam tudo mais complexo, recusando aqueles que limitam a liberdade de expressão. Isto é particularmente relevante agora que emergem pequenos ditadores e pessoas que não reconhecem a liberdade do outro.

 

Já tinhas falado da importância de pensar a comunidade, e o serviço educativo, tal como as residências, acabam por pôr isso em prática recorrendo a modelos comunitários.

Para nós, esses formatos sempre foram importantes, desde a orientação de workshops por artistas, até aos elementos que constituem o grupo de arte educação, como a Joana Mendonça e a Filipa Valente, que são elas próprias artistas. Os modelos comunitários são importantes porque é com o outro que se debate em torno de objetos artísticos e culturais, a partir dos quais podemos desvendar várias temáticas. Em todas as atividades é central a ideia de pensamento crítico, de que podemos refletir a partir da arte e dos artistas. A experiência estética não está só no ver, mas é uma experiência multisensorial que sublinha o valor humano e a importância de todo um rol emocional, sensorial e intelectual. Tudo isso é transformador e nós pretendíamos que a Bienal fosse transformadora. Todo o resto do programa – com performances, concertos, debates, partilhas de resultados das residências – também nos leva a esse lugar de partilha e não deixa de ser um lugar do imaginário social, uma reflexão sempre política e cultural. Gostamos que a Bienal seja regeneradora. Ela é colorida, os temas são abordados com um certo humor e alegria. Estamos do lado oposto à tristeza e aos discursos extremados, que excluem. Estamos do lado do mais, mais, mais. A formação artística é importante e passa não apenas por estas atividades, mas também pelas visitas guiadas, que têm vários modelos. Podem ser com o curador, com os artistas, individuais ou em grupos formais ou informais, espontâneos, maiores ou mais pequenos. A Bienal foi pensada como um momento de acesso às artes e à diversidade cultural e isso verifica-se em todas as propostas.

ensaio-conversa

Acerca do que agora importa, ou que impressão deixar da Bienal de Arte Contemporânea da Maia  2023

Joana Mendonça

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São raras as vezes em que uma exposição de arte contemporânea se apresenta com um tema que, por si só, seja matéria robusta de investigação. Um tópico centrado no estado das coisas aqui, e no resto do mundo, mas também focado no estado da arte, daquilo que é mais contemporâneo, mais inovador, arrojado (e misterioso) do que tem sido a produção artística nos últimos anos. Este é o caso da Bienal de Arte Contemporânea da Maia 2023 (BACM23), cujo tema avançado pelo curador José Maia, se posiciona num mundo que é o da arte, mas se propõe sair dele trazendo questões impactantes para o presente e o futuro, e seguramente enraizadas no passado – porque sem memória não somos nada. Esse futuro é outro; não é resultado do que aparentam ser as visões mais pessimistas, mas sim um futuro utópico, habitado de alternativas criativas, utopias realizáveis 11. Pelas palavras do curador José Maia, no roteiro de apresentação da Bienal: “A Bienal de Arte Contemporânea da Maia 2023 atuará no campo das utopias-realizáveis, apresentando novos autores e temáticas diversas. Será um lugar de imaginário social, reflexão política e partilha cultural”;

Trazendo para o centro da discussão o ambiente e a paisagem, a reutilização de objetos, meios e energias, numa aposta na internacionalização e na expansão do conceito de indivíduo/coletivo, e com uma capacidade de memória tão grande quanto a de Funes2Funes é a personagem e tema principal de um conto de Jorge Luís Borges “Funes ou a Memória”, original de 1944: Funes conseguia lembrar-se de tudo o que já tinha vivido, de forma exatamente igual, sendo ao mesmo tempo um privilégio e uma maldição;, que por ter a maior memória do mundo, não se deixará cair nos mesmos erros. 

A exposição intitulada “Foi para caminhar que aqui cheguei” é mais do que uma única aparência e configuração: é um lugar híbrido, com muitos braços e pernas, que propõem que uma multiplicidade de conceitos abra o leque das formulações conceptuais, deixando assim um contributo marcante para o futuro. Para estas linhas orgânicas temáticas traremos alguns nomes, para que possibilite uma melhor navegação pelas palavras. 

 

Exposição Nuclear

Ao espaço expositivo principal, isto é, as galerias do Fórum da Maia, assim como o espaço exterior envolvente, chamamos de Exposição Nuclear, sendo útil distinguir esse lugar dos demais, que foram pensados como se fossem galhos extensíveis a partir desse mesmo núcleo. 

Será que é possível, nos dias de hoje, ser surpreendido por uma exposição de arte contemporânea, quando, desde meados dos anos 1960, os artistas protagonistas desta forma de estar no mundo, foram ultrapassando limites que nunca havíamos pensado ser possíveis? E quando, passados estes limites, se compreende que a missão do artista hoje é outra: estar atento ao mundo, pintar de forma sensível, expor solidariedade, desenhar empatia, procurar formas de estar juntos numa harmonia com todos, incluindo aqueles que sempre se sentem de fora. 

O espaço do Fórum da Maia foi tomado por um conjunto de forças e energias tão poderosas que se sobrepõem à robusta arquitectura, aquecem a temperatura do lugar, convidam a entrar e a estar. E, como se não bastasse, as outras configurações encontram forma de chegar a nós por e-mail, redes sociais, word of mouth, ou porque alguém nos envia algo que sabem que vamos gostar. 

Esta exposição projeta-se no futuro, mas coloca-nos numa forma de estar em que conseguimos olhar paralelamente para o passado, para o que fomos, e para o que gostaríamos de ter sido. 

É estranho para nós, pensarmos num tempo em que ainda não tínhamos chegado aqui: pensar numa versão de nós mais jovem é sempre uma visão colapsada sobre si mesma, num misto de poesia com impossibilidade. O nosso eu atual troça do mais novo, ao mesmo tempo que inveja o metabolismo juvenil e a ausência de insónias: mas o que não consegue de todo fazer é recuperar o sentir desse mesmo jovem. Nenhuma utopia nos consegue resgatar a forma de viver sem preocupações, sem sentido de responsabilidade do qual não conseguimos fugir. Queiramos ou não admitir, estamos reféns do presente, e eventualmente da possibilidade de planear o futuro (embora este sempre nos dê a volta e nos surpreenda). Podemos alcançar as utopias que tanto desejamos através da arte, de um alter ego que retém os nossos pecados, ou as características que apreciamos menos em nós. 

 

Residências Artísticas 

Durante a montagem da Exposição Nuclear, e consequente preparação do programa adjacente, deu-se início ao programa de Residências Artísticas. Diogo Nogueira, natural da Maia estreou este espaço – fisicamente localizado na Galeria D. Manuel II, no piso inferior do Fórum da Maia – para conceber a pintura de grandes dimensões instalada na fachada exterior, junto à entrada poente. Durante a sua residência artística, utilizou lonas publicitárias – excedentes de utilização do Departamento de Cultura – como suporte para criar uma paisagem idílica, onde vários corpos masculinos sem roupa (quais ninfas que se banham nos rios), remetem para pinturas icónicas da história da arte, onde o corpo feminino é substituído por um corpo masculino, provocando-nos uma sensação de estranheza, sem que possamos compreender o porquê. 

Paralelamente a esta residência esteve também Carlos Trancoso, que, aproveitando a dinâmica criada pela montagem da exposição, foi fotografando as equipas (as pessoas) envolvidas nessa preparação, tanto do grupo da Bienal, como da equipa fixa do Fórum, criando um conjunto de avatares fantasmagóricos (curiosamente a maioria dos fotografados não se revê nas composições) tridimensionais que integram a sua instalação na mostra. 

Durante algumas semanas dos meses de agosto e setembro 2023, também Filipa Valente realizou a sua residência artística, onde se dedicou a um projeto distinto do “Campos Magnéticos” exposto na Exposição Nuclear. Aqui, Filipa investigou algumas espécies naturais do Baixo Vouga Lagunar /Floresta Lusitânia, “desde espécies autóctones a invasoras ou ameaçadas e até simbólicas” (Valente, 2023). Este projeto tem uma raiz autobiográfica, recorrendo à investigação de elementos particulares da região onde nasceu, e materializa-se através da aprendizagem e experimentação de técnicas de artesanato, também elas características da região de Aveiro: “a representação das espécies parte de esquemas de bordados, arraiolos ou tapeçarias, criando uma nova composição com as figuras, e os materiais ainda estão a ser experimentados, ainda não tenho um material final de eleição”33. Excertos de conversa com a artista acerca da Residência Artística; . (Valente, 2023). 

As Residências Artísticas foram pensadas como extensão de lugar de criação, onde o que importa não é a chegada, mas sim o caminho, e onde os artistas que desejaram criar no lugar onde a arte se expõe, tiveram oportunidade para o fazer. Tendo em conta o carácter processual deste formato, e das possibilidades que se abrem ao apresentar de forma honesta o processo de trabalho dos artistas residentes, ficamos perante a materialização de algo híbrido entre a mediação e a criação artística. Neste sentido, e de forma espontânea (sem marcação), os visitantes que tivessem curiosidade em visitar o espaço reservado às residências e o fizesse, seria surpreendido por um conjunto de possibilidades tão variado quanto os artistas que aí estiveram. 

Este espaço/lugar esteve em constante metamorfose, pois era partilhado com o Programa de Educação Artística, com a maioria dos Workshops com Artistas, assim como com algumas visitas-oficina e oficinas promovidas pela equipa de educadores. 

As restantes residências da Bienal aconteceram em diferentes momentos: Carlos Trancoso, Diogo Nogueira, Júlia de Luca, Teresa Bessa em abril/maio, April em junho/julho, Raul Macedo em setembro e  Mathias Gramoso em outubro.

 

Performances e Concertos 

Se estivermos dispostos a iniciar um processo de partilha, participação e um sentido de coletivo em torno de um tema ou contexto, resulta daí que tudo tem um enquadramento político nos temas em questão, e na forma como são representados e entendidos. As exposições de arte têm destas coisas: deixam em aberto algumas feridas acerca de coisas não muito claras: a obra de Yasmine Moradalizadeh pode parecer exótica, mas é tão mais do que isso. Fala acerca do ser humano, do impacto e da importância que tem a presença da avó que ensina a bordar, e do que isso obrigou a compreensão dessa ausência: o bordado como uma forma de terapia auto-infligida, uma forma de cura desta identidade tão individual (que nos identificamos com ela) como coletiva, porque fala de um todo, muito maior do que ela. No caso desta artista, no dia da inauguração da exposição, a performance duracional que realizou em parceria com a Associação de Artes Criativas da Maia, permitiu ao público compreender o processo de realização da peça cuja materialização esteve intimamente ligada a esta associação.

O ato de criar uma performance é essencialmente altruísta. O artista, ao conceber uma ação para ser absorvida em tempo real, está a colocar o enfoque da obra do lado do público, que pode ou não, estar preparado para o receber. Alice & Adrien Martins conceberam uma performance para ser apresentada na data de inauguração da BAMC, e cujo resultado material (que vemos ao longo da exposição) é o conjunto de despojos desse momento. Em lugar de ser uma ativação de uma peça, como acontece com os casos de Tiago Loureiro, Vicente Mateus ou Iñaki Aires, esta performance, que remete para um espaço privado, interior, agarrou a atenção de todos os que estiveram presentes, pela forte presença dos corpos dos dois irmãos, pela reflexão do público nos espelhos aparentemente cenográficos, e convidou-nos a imaginar o resultado da materialização dos elementos ali presentes. 

As performances preparadas para a BACM foram trazidas nos diferentes momentos de ativação da exposição, com a cadência de uma vez por mês44. 19 de maio, 17 de junho, 15 de julho e 23 de setembro de 2023, com a exceção de agosto (por ser reforçado com a mostra de vídeos online). Em cada sábado, o programa começava com performances muito convidativas, com um carácter leve, podendo ser assistido por todos os públicos, enquanto que, com o avançar do dia, a tendência era a de apresentar performances mais densas, com uma grande presença do corpo, da sua transformação ou metamorfose, como os casos de Nenaza no primeiro fim de semana, ou de António Onio a 17 de junho. 

Destaque ainda para as performances gastronómicas de Paula Lopes (Hotelier), realizadas ao final dos dias 19 de Maio (inauguração) e 15 de Julho. Estas performances aconteceram na “sala da piscina” do Fórum da Maia, onde estão instaladas em paralelo a obra fixa de Paula Lopes “Piscina Seca” (2023) – uma instalação que cobre todo o chão do interior dessa sala com uma película azul clara, lembrando a cor do fundo das piscinas municipais, com o som ambiente do Clube Fluvial Portuense – e de A Leste “Aragens Vagabundas” (2023), um conjunto de estruturas autoconstruídas, com reaproveitamento de materiais, e onde a sua utilidade é efémera e ajustável às circunstâncias. Este espaço concebido pelos dois grupos de artistas, foi sendo utilizado pelas diversas atividades de arte educação, mas onde foi mais habitado foi nas performances gastronómicas, onde o momento de partilha de uma refeição se tornou num ritual estético, com a seleção de alimentos variados, num misto de exploração artística e gustativa. 

Assistir a um concerto num ambiente de exposição de arte é um privilégio do qual a maioria de nós ainda não foi brindado. Sentir a vibração sonora do lugar, deixar a música invadir o espaço dedicado às imagens é uma forma de desmaterialização única e experiencial que não se consegue descrever. 

Os concertos agendados distribuem-se por quatro momentos de ativação da exposição, integrados num programa mais extenso que começa com uma visita com o curador (às 10h30), e termina pela noite dentro com concertos e DJs. A forma como os concertos estão alinhados com este programa adicional à exposição reforça o carácter multidisciplinar da exposição, assim como das linhas programáticas utilizadas. Foi possível sentir os momentos de maior emoção e impacto no público, nos lugares dos concertos, onde a música não deixa ninguém indiferente. 

 

E-mail Arte

“Quando havia realidade e tinha havido história, o corpo do saber respirava pausadamente. Estendia sobre elas um conhecimento cada vez mais científico. Inspirava o futuro – como uma coisa que um dia podia ser – e histórias do futuro. (…) Uma bela tarde o futuro desapareceu. Quando nos levantámos, não estava lá. Não deixou nada escrito, e como se isso não bastasse, levou com ele os outros tempos dos verbos: o presente, os pretéritos todos e até o condicional. Só ficaram os do conjuntivo por causa do que.” (Melo, 1995, p. 30)

Pensemos na e-mail arte desta forma: imaginemos se fosse possível que, há vinte anos atrás, quando mal sabíamos enviar um e-mail, teríamos acesso a tudo o que sabemos hoje. Naquela altura, em que fazíamos tudo e mais alguma coisa para criar uma imagem com qualidade, para ter no final uma fotografia apelativa de nós próprios, saíamos sempre desiludidos, e talvez por isso, pouco entusiasmados na arte com recurso à tecnologia. Tivéssemos nós viajado no tempo, e qual Marty Mcfly55. Personagem principal da triologia cómica de filmes “Regresso ao Futuro” de Robert Zemeckis, e interpretado por Michael J. Fox, realizado em 1985; , tido acesso ao nosso presente, e teríamos enviado para nós (no futuro) um vídeo a lembrar que devemos dar valor ao que temos. 

A e-mail arte é uma forma de criação de imagens que está parada no tempo, e que recorre a ferramentas que já não são populares, e tem o objetivo claro de nos surpreender. Talvez porque todos utilizamos o e-mail de forma insistente e automática, e essencialmente associada ao contexto de trabalho, é difícil compreender que o e-mail pode ser uma forma de disseminação de obras de arte. 

Relembrando que a arte postal – que se popularizou entre artistas durante as várias ditaduras internacionais do século XX – foi responsável por momentos de libertação de discurso, como a revista internacional KWY, e mais uma prova de que os artistas sempre encontram uma forma de quebrar com as linhas narrativas unívocas, é com um sorriso nos lábios que recebemos os e-mails da BACM em 2023, que terminam com a seguinte afirmação: “Este e-mail é uma obra de arte”.

 

Mostra de Vídeos Online

Muitos são os casos em que os artistas utilizam a extensão para diferentes formatos, característica particular que torna esta edição da BACM23 distinta das anteriores. Ao longo da exposição, mais especificamente durante o mês de agosto, de segunda a sexta-feira, diferentes versões da mesma obra, ou com uma peça completamente diferente, os artistas foram convocados a utilizar a vídeo arte como mais um formato de apresentação. Durante o período de visualização, os vídeos apareceram diariamente nas stories do instagram, facebook e youtube, trazendo o lado mais mundano da contemporaneidade para as linguagens da arte, porque os artistas não desdenham possibilidades de ação. Os vídeos completos estão disponíveis para visualização no site oficial da BACM23, estendendo mais um pouco a temporalidade de uma proposta demasiado fugaz para o calor deste agosto. 

Clara de Cápua é um dos casos onde a mostra de vídeo permite explorar um pouco mais do universo temático onde a presença de um corpo surge em lugar inesperado, mantendo-se a passagem do tempo como algo que tem importância, deixando o observador especular em torno do que está realmente a acontecer. Telas divididas em dois ou em três momentos simultâneos aumentam a dinâmica da narrativa sugerida pelos títulos, que por alguma razão refletem o clima, elementos naturais, ou situações extremas que levam a necessidade de sobreviver (excesso de água, excesso de neve), sem sabermos se aquele corpo que ali está é real ou não. Mariana Barrote apresenta um vídeo onde aparenta utilizar alguns adereços apresentados na peça escultórica etérea/fantasmagórica “Caudal rítmico no leito opalino” (2023) da Exposição Nuclear. Aqui expande para o vídeo um dos muitos gestos sugeridos por esta peça escultórica, composta de adereços presumivelmente futuristas, que é ativada (uma das máscaras) por um corpo feminino que corre lentamente enquanto imita o movimento “a trote” de um cavalo. Do lado satírico da vida sai também a proposta do coletivo portuense Pedra no Rim, em que o vídeo “Composição” aproveita a situação para mostrar ao público duas das suas características essenciais. Por um lado, o aspeto trocista, sarcástico e, por vezes, lúdico, das suas peças cerâmicas, são aqui apresentadas de forma animada, sugerindo uma aproximação connosco: todos desejamos tocar nas peças expostas na grande mesa de trabalho. Por outro lado, percebemos aqui a origem concreta das peças: as múltiplas pombas mortas (que, nos títulos das obras, descansam ou dormem) de forma violenta às garras das gaivotas, os sapatos abandonados, o lixo característico do Bonfim, os gatos. Tudo isto é apresentado num flash demasiado rápido de fotografias, onde já não aparenta ser recreativo, mas sem saber porquê, não conseguimos parar de ver: queremos antes desvendar todas as peças por detrás desta curiosa persona criada em 2018 por Fabrizio Matos e Israel Pimenta. 

Para Carlos Trancoso, por exemplo, a mostra de vídeo arte apresentou-se como uma oportunidade de expandir mais um campo do que já é uma obra multimeios: na exposição, Trancoso mostra as suas “máscaras”, criadas a partir de múltiplas fotografias dos rostos das pessoas que trabalham no Fórum da Maia e na Bienal, e através de um QR code, aceder a um site com mais elementos visuais. No vídeo que apresenta nesta mostra, sugere-nos estar perante imagens geradas por inteligência artificial, devido ao caráter maquinal e monocórdico da voz que narra. 

Como se faz um futuro? Questionam Vitor Moreira & Nika, em diálogo com o texto autoral escrito por Júlia de Carvalho Hansen. Um tríptico de vídeos onde uma pulsão visual de imagens em movimento se conjuga com o que perguntamos a nós próprios: quem somos, o que estamos aqui a fazer? As composições vão criando efeitos de fade in e fade out, em conjunto com diversas representações de água (sólida, líquida, gasosa, em bolas de sabão ou outras), o fundo do mar, nuvens, paisagens, mas também nos mostram as cidades demasiado densas, poluídas, resultado do efeito nocivo da nossa presença. “Como se faz um futuro? O que se leva na bagagem? O que se escolhe?”66. Júlia de Carvalho Hansen, na página 27 da Brochura da Bienal de Arte Contemporânea da Maia; escutamos a certa altura. “É preciso água” responde Júlia de Carvalho Hansen na brochura da exposição.

No caso de Mathias Gramoso, a mostra de vídeo arte é uma oportunidade de apresentar uma outra peça, no fundo ampliando a temática das questões ecológicas e/ou climáticas, que tem vindo a desenvolver nos últimos anos. O vídeo, com a duração de 10 minutos, apresenta num ecrã dividido em dois, o que aparenta ser o resultado de recolha de areia da praia. Do outro lado do ecrã, “Surfing the Incident” mostra um ponto de vista autoral, de autorrepresentação, em alto mar, numa presença que está entre o surfista e o náufrago (devido à câmara colocada no próprio corpo), que aguarda pacientemente o seu próprio salvamento. O ruído inicial da escavadora na praia, dá agora lugar ao bulício calmo e melódico das ondas, do vento e da sua própria respiração. Há aqui uma grande presença da água, da relação com a água em escala oceânica, com a imensidão da vida, assim como da insignificância do ser humano: “Há histórias sobre o oceano, bem como poemas, canções, letras. O oceano como facilitador da vida, tão misterioso, tão poderoso. Cheio de recursos”. (Hille, 2016, p.73) 

Mas o oceano é mais do que isto, é denso, nebuloso, violento, uma existência orgânica de vida e de morte, e muitas vezes usado como fronteira, ou como forma de impedir alguém de entrar ou de sair. Nesta exposição, a água tem uma forte presença, que é igualmente explorada na extensão online da vídeo arte dos artistas mencionados. Além destes, estiveram incluídos na mostra de vídeo April e Léa Castro Neves, Arcana, Bug Snapper, Carla Castiajo, Coletivo SEM-FIM, Filipa Valente, Ivy Lee Fiebig, Mariana Camacho, Mariana Fernandes, Miguel Ângelo Marques, Náhir Capêlo, Raul Macedo, Susana Chiocca, Teresa Bessa, Vicente Mateus.

 

Publicações 

A sensibilidade dos artistas reflete a sua constituição, e na sua verdade é condicionada por fatores hereditários, pelo seu processo de crescimento. Grande parte das obras de arte retiram uma parte de inspiração dos fatores externos, e a restante do subconsciente, que por vezes surge sem uma explicação aparente, ou resultante de uma boa noite de sono. Quase todos os artistas parecem assumir a existência de uma zona de conflito interior que alimenta a obra de arte, e é, ao mesmo tempo, resolvida por ela. E, enquanto a maioria dos indivíduos se preocupa com a aquisição de propriedade, a melhoria das suas condições de vida (ou a constituição de uma família) deixando dessa forma a sua marca no mundo, o artista sabe que a sua obra é essa marca. E quando o artista quer constituir família, e adquirir propriedade, deixando uma marca no mundo, em geral, vive uma boa parte da sua vida num conflito entre o que é o seu eu e o que a sociedade espera de si. Só muito tarde, a maioria dos artistas se apercebe que é possível gerir a sua criação inevitável da mesma forma que qualquer outro tipo de carreira, e que outros já o fizeram antes. Não querendo com isto dizer que é fácil, mas sim que é possível. 

Talvez possa parecer desmedido, mas é um facto que as publicações de artista são uma das mais concretas fontes de rendimento dos artistas contemporâneos que, conscientes da dificuldade em encaixar nos parâmetros considerados como socialmente interessantes, perceberam que a criação de um livro os tornava fiáveis: ao público geral (que assim vê o artista como um indivíduo culto), ao público específico que encontra aqui a possibilidade de adquirir uma peça a um valor realista, aos colecionadores que se interessam por adquirir todas as provas materiais mais recentes de que aquele artista que seguem tem, de facto, um valor comercial determinante. 

Por outro lado, a publicação de autor tem outra particularidade que muito agrada aos artistas: a possibilidade de criar para um espaço de maior intimidade, isto é, um lugar que chega ao público num contexto muito mais privado e solitário (em contraste com as performances, por exemplo). 

Há ainda uma terceira e muito vantajosa característica das publicações de artista: por não obedecerem a nenhum tipo de formato ou modus operandi específico, as publicações podem chegar-nos em formatos de facto muito distintos. Desde o flyer (ou folheto) de exposição a um desdobrável que mostra como se faz alguma coisa, ou como se chega a um lugar – falo do mapa desdobrável do projeto “Campos Magnéticos” de Filipa Valente, aos desenhos à mão levantada, que serviram como cartaz de Vicente Mateus. Estes são objetos produzidos em pequena escala, e numa tiragem reduzida, pelo que o investimento dos artistas, sendo mais acessível, permitiu um caráter de exploração e uma maior liberdade implicada. 

No lado oposto, há artistas que optam por investir numa publicação com um aspeto mais comercial, fazendo tiragens curtas dos seus livros, e escolhendo criteriosamente os pontos de venda dos mesmos. Vale a pena falar aqui da Coleção de Publicações e Livros de Artista da Coleção de Arte da Fundação de Serralves, que é uma das mais relevantes coleções desta especificidade em Museus europeus. E isto só foi possível porque, durante anos, o orçamento para aquisições de obras de arte de que dispunha o Museu de Serralves, apenas permitia adquirir uma publicação – em casos de artistas cujo valor comercial das suas peças ultrapassava o valor anual para aquisições. 

Para muitos artistas, o livro de artista é ainda a possibilidade de experimentar uma nova materialidade, e sugerir ao público que complete a obra, ao montar, cortar ou dobrar páginas ou a totalidade do livro:  

“Montadas em papel ou cartão, impressas em múltiplos exemplares e disponíveis a preços razoáveis, estas obras revelam-se edições originais. Inspiradas em percursores históricos como figuras recortadas em cartão ou livros com elementos móveis, muitas obras autónomas de artes visuais foram concebidas para construção ou montagem através da destreza manual do observador”77. Tradução minha a partir do original em inglês; (Brach, 2011, p. 5)

 

MUPIs

A mostra de MUPIs que aconteceu em paralelo à programação da BACM organizou-se em três núcleos distintos, quer a nível temático, geográfico e ainda formal. 

O primeiro espaço é envolvente ao Fórum da Maia, e em particular tem o facto de estes MUPIs funcionarem como uma instalação fixa, com um impacto arquitectónico naquele lugar onde estão instalados. A praça tem múltiplas utilizações ao longo do ano – sendo ocupada pela Feira do Livro da Maia em julho, por exemplo – recai sobre ela uma escolha para crianças e jovens andarem de bicicleta, por ser seguro e protegido das estradas, assim como pelas escolas envolventes que ali param para lanchar ou deixar as crianças correr. Ao mesmo tempo, é curioso perceber como as crianças utilizam estas estruturas como obstáculos para serem contornados, e integram os expositores, assim como as obras neles presentes, nas suas brincadeiras. Visualmente, o resultado é agradável ao olhar: os outdoors de Teresa Bessa com imagens a p/b do Venepor integram-se na arquitetura do lugar e dos prédios envolventes, como fazendo parte destes. Há uma predominância do branco, preto e cinzento nas imagens produzidas para este lugar, praça central e ponto de encontro para muitos maiatos. Neste espaço entram em diferentes momentos Júlia de Luca, Náhir Capêlo e Raul Macedo.  

Uma referência interessante a esta formalização artística é a Mupi Gallery88. https://www.maushabitos.com/en/projects/9-mupi-gallery/ do Maus Hábitos, onde 3 MUPIs colocados no foyer da sala de concertos são programados como se de uma galeria se tratasse. Os artistas convidados a intervir criam as suas imagens, que são inseridas nas estruturas publicitárias, mas podem ainda intervir no seu exterior, assim como nas paredes da sala onde estão ligados. Apropriando a estética de arte urbana a uma pequena escala, esta sala faz-nos sentir que estamos na rua a ver uma instalação temporária. 

Interpelando o visitante num espaço ainda mais surpreendente, algumas ruas do centro da Maia, em conjunto com outras localizações em Águas Santas, Barca e Avioso, funcionam como um segundo espaço de exposições de MUPIs, desta vez mais distante do Fórum da Maia. Aqui, em espaços não consagrados para expor arte, e num momento de abertura para lugares mais surpreendentes, apresenta-se o mais democrático espaço expositivo da Bienal: a rua. Estas ruas são lugares habitados pela espuma dos dias, pela rotina dos maiatos, habitantes locais ou visitantes esporádicos99. Na brochura da exposição, há um mapa que aponta as diferentes localizações destes MUPIs, assim como da agenda de ocupação. . Podiam ser surpreendidos pelos diferentes posters criados pelo designer José Filipe Alexandre, que, numa seleção de cartazes não escolhidos para impressão final, são aqui expostos como obra de arte; em junho/julho, estes espaços foram ocupados por April (o rosto transformado num alter ego formal) e as fotografias captadas por Léa Castro Neves selecionadas como explosão de cor e corpo; Carlos Trancoso expandiu mais um nível de experiência as suas peças na exposição nuclear e vídeo arte, e Hugo Adelino agarra em setembro e outubro, com uma seleção de fotografias da montagem da exposição, do design expositivo, das obras de arte, e dos seus intervenientes. Neste caso – e talvez o mais surpreendente a ser colocado neste formato – as imagens de Adelino criam dúvida no observador, por se tratarem de imagens de grande qualidade, que facilmente se poderiam confundir com fotografias de moda de um cartaz publicitário: só que aqui, não há patrocínios, não há marcas implicadas, e há uma sensação de familiaridade com as imagens e o lugar. 

O terceiro e último lugar ocupado, dentro desta tipologia expositiva, é o outdoor no exterior do Fórum da Maia, onde se encontra a pintura de grande formato de Diogo Nogueira, já aqui mencionado. Particular, pela forma como interpela o visitante da Bienal, que começa a percorrer a exposição ainda antes de entrar no edifício do Fórum e porque convida ainda os utilizadores do metro (consegue ver-se da paragem de metro Fórum Maia) e restantes transeuntes da cidade a entrar, criando uma prática cultural sem darmos por isso. 

Resta-nos dizer que a exposição tenciona ser vista em formato presencial, para que possamos usufruir do misto de sensações e experiências aqui descritas. Ainda há tempo. Vamos todos. 

 

Referências Bibliográficas 

 

BORGES, Jorge Luís, (1989). Ed. original 1944. “Ficções”, ed. Teorema, Lisboa; 

 

BRACH, Bettina, (2011). “From Paper to Space – Published Paper Sculptures”, ed. Serralves, Porto & Weserburg, Bona;

 

DECTER, Joshua, DRAXLER, Helmut & others (2014). “Exhibition as Social Intervention – Culture in Action, 1993”, ed. Afterall Books, London; 

 

HILLE, Moira (2016). “Cruising as”, incluído em “Spaces of Commoning – Artistic Research and the Utopia of the Everyday”, ed. Sternberg Press, Berlim;

 

MELO, Alexandre (1995). “Velocidades Contemporâneas”, ed. Assírio & Alvim, Lisboa;

ensaio

Conversa com Miguel Mark Hitlodeu, descendente de Rafael Hitlodeu e habitante da nova utopia, sobre os viveiros do futuro acolhidos pela inovadora e destemida Bienal da Maia

Fátima Vieira

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CONVERSA COM MIGUEL MARK HITLODEU, DESCENDENTE DE
RAFAEL HITLODEU E HABITANTE DA NOVA UTOPIA,
SOBRE OS VIVEIROS DO FUTURO ACOLHIDOS
PELA INOVADORA E DESTEMIDA
BIENAL DA
MAIA

 

Miguel Mark Hitlodeu, personagem de ficção, visitou o Professor José Vieira de Pina Martins em 1998 para lhe dar notícia do desenvolvimento, em finais do século XX, da ilha da Utopia que Thomas More descrevera em 1516. Desse encontro resultou Utopia III11. Miguel Mark Hitlodeu & José Pina Martins (1998), Utopia III, Lisboa, Verbo., que Miguel Mark Hitlodeu assinou conjuntamente com Pina Martins. O descendente direto de Rafael Hitlodeu voltou a terras lusas em 2014, numa missão confiada pelo governo administrativo da Nova Utopia, para acompanhar os preparativos das comemorações dos 500 anos da publicação da obra-prima de More. Tendo então tido o privilégio da sua visita, verti o relato do nosso encontro num texto publicado na Colóquio/Letras22. Fátima Vieira (2014), “Uma estátua para Rafael Hitlodeu: Reflexões sobre utopismo e distopismo na literatura portuguesa do século XX e sobre os caminhos recentes da Nova Utopia baseadas no testemunho indesmentível de Miguel Mark Hitlodeu, descendente de Rafael Hitlodeu. Relatado fielmente por pessoa fidedigna”, Colóquio/Letras, Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 186, pp. 9-41.. Tive depois o prazer de o rever numa sessão por Zoom durante a pandemia de COVID-19, tendo a conversa sido relatada num número da revista Terramaia33. Fátima Vieira (2021), “Retrato programático para urbes pós-pandémicas feito por Miguel Mark Hitlodeu, descendente de Rafael Hitlodeu e habitante da Nova Utopia, vertido para texto por pessoa fidedigna a partir de conversa por meios telemáticos”, Terramaia, Município da Maia, n.º 4, pp. 26-31.. Que prazer tive na sua recente visita a propósito da Bienal da Maia!

Miguel Mark Hitlodeu bateu três vezes à porta de minha casa. Tinha-me enviado um postal três meses antes. “Vou poder visitá-la, Professora!”. À sua boa maneira, não tinha dito quando. “Na Nova Utopia vivemos no tempo longo” – dizia. “O tempo da Professora é demasiado apressado”. Por acaso, naquele dia eu tinha tempo – ele havia escolhido um domingo para me visitar.

A mesa da sala de jantar dava conta do caos em que estava o meu pensamento: fotografias, recortes de entrevistas, livros mal empilhados.

– Já vi que o seu pensamento hoje está com a Bienal da Maia – comentou. – Fico contente.

Miguel Mark Hitlodeu pegou em várias fotografias, colecionou-as como se fossem um baralho de cartas e colocou-as com cuidado, uma a uma, em nove filas de três fotos cada. No final, alterou a ordem de algumas das fotos, e pude perceber que o critério havia sido de ordem estética, das imagens mais claras às mais escuras.

– Estou muito feliz com esta Bienal – disse ele num suspiro depois de longos minutos em silêncio. – O José Maia sabe o que está a fazer.

Confesso que fiquei surpreendida. Não sabia que Miguel Mark Hitlodeu se interessava tanto por arte – e sobretudo por propostas tão arrojadas quanto as que tinha agora à sua frente. Olhei melhor para ele. Já não tinha a longa barba que lhe conhecera nas nossas reuniões por Zoom, durante a pandemia, e na verdade parecia mais novo, com o cabelo curto, bastante grisalho, é verdade, mas curtinho dos lados e ligeiramente espetado no cimo. Trazia calças justas negras e t-shirt branca coberta por uma camisa de cor azul-ganga desabotoada. As sapatilhas brancas davam-lhe um ar descontraído.

– Também gosto muito do projeto – disse eu inclinando-me sobre a mesa. – Faz-me acreditar no futuro.

– Ora aí está – disse Miguel Hitlodeu, tirando-me das mãos a foto de uma jovem performer de cabelos muito longos, apanhada pela câmara numa pose tão surpreendente que não se percebia bem onde começava e acabava o seu corpo. – Estes artistas dão-nos conta de novos gestos, de palavras ainda por dizer, de imagens do futuro, e oferecem-nos conceitos de possibilidade.

Escolheu de seguida fotografias de partes de corpos.

– Vê estas aqui? Gosto da forma como os corpos nos aparecem travestidos, questionando as fronteiras que a sociedade inventou.

– Confesso-me agradada com essa sua visão – afirmei com ar malicioso –, mas olhe que gostava de saber o que anda o meu amigo neo-utópico a ler. Não falava assim da última vez que o vi.

– Não falava porque foi no passado. A vida é assim, sempre a evoluir e aprender. Hoje olho o mundo de forma diferente porque hoje já não é ontem. Estamos sempre a ler o mundo com o pensamento do passado, e não compreendemos que precisamos de um novo pensamento para compreendermos o futuro que desponta.

– É curioso, é isso que diz o Daniel Innerarity, que temos de perceber que os próprios conceitos mudam. E que temos de os redescrever para os tornarmos operacionais para os nossos tempos. O conceito de democracia, por exemplo… Não podemos continuar a querer entender a nossa sociedade à luz de instrumentos teóricos que foram definidos para compreender o século XIX, dominado por uma concepção linear da história. Vivemos hoje num mundo demasiado complexo…

– Professora, andamos a ler os mesmos livros! Uma Teoria da Democracia Complexa tem lugar cativo na minha mesa-de-cabeceira. E já vi que tem aqui bem sublinhado um exemplar das Geografias Pós-Modernas de Edward Soja. Como gostei de o ler! Mostra como a ideia de espaço foi substituindo a de tempo, obrigando-nos a pensar as nossas vidas não apenas no eixo diacrónico, mas nos seus múltiplos cortes sincrónicos. Adorei a descrição que Soja nos oferece da cidade de Los Angeles, representada na sua densidade composta por camadas sobrepostas, justapostas, geridas por tensões ora de oposição ora de complementaridade! E veja como o mesmo raciocínio pode ser aplicado a nós próprios: se quiser explicar quem sou, terei de descrever os múltiplos papéis e camadas que, simultaneamente, me definem: sou do género masculino, sou ao mesmo tempo filho e irmão, vizinho, primo, colega e amigo, professor e aluno, Embaixador Itinerante do distante país da Nova Utopia e Diretor do Curso Avançado de Imaginação Coletiva…

– Ah, mas não sabia disso, quando abriu o curso?

– Já lá vamos, Professora, olhe que até estava com saudades suas! Quando começa a falar parece uma ventoinha!

Fiquei a olhar com ar sério para Miguel Mark Hitlodeu. Até agora ele é que tinha feito a despesa da conversa, e os braços dele não tinham parado um só momento, desenhando uma linha horizontal enquanto falava do eixo diacrónico, movendo a mão vigorosamente para baixo e para cima ao descrever os cortes sincrónicos, e abrindo por fim os braços num crescendo à medida que explicava as camadas que o compunham. Ele ignorou, contudo, o meu ar aborrecido e continuou:

– É isto mesmo que a Bienal da Maia nos faz compreender. Repare, Professora, a heterogeneidade de conteúdos das diferentes exposições! O visitante da exposição não poderá deixar de se aperceber de que o Curador apostou na diversidade – e não podia ser de outra maneira, pois não, Professora?

Não me deu sequer tempo para concordar.

– O José Maia não podia fazer de outra forma porque o futuro é assim mesmo.

– Pois, é essa a diferença entre futuro e devir – atalhei, adotando conscientemente uma atitude doutoral. – O futuro inscreve-se na linha da História: o passado é o que já aconteceu, o presente o que está a acontecer agora e o futuro o que acontece de certeza amanhã. Mas como não podemos prever o que vai acontecer, temos de pensar não num futuro, mas em múltiplos futuros possíveis: o devir enquanto espaço de construção aberta, enquanto rede de possibilidades.

Respirei fundo. Tivera tanto medo de ser interrompida por Miguel Mark Hitlodeu que falara de um só fôlego. Fiquei muito vermelha, sentindo-me uma verdadeira ventoinha. O meu amigo neo-utópico teve a gentileza de não mo fazer notar.

– Veja só aqui, Professora – disse Hitlodeu apontando para o programa provisório da Bienal, elencando os artistas e coletivos convidados a participar. – “Complexidade” é mesmo a palavra-chave. E o conceito de rede também é importante. Repare, muitos destes artistas não se conhecem, têm diferentes vozes artísticas, mas vão trabalhar juntos na Maia. Já imaginou a explosão de desejos e ideias? E a diversidade de meios… veja só: artes visuais e sonoras, performance, dança, poesia… e a hibridez, a hibridez dos eventos!

– Pois, quando falei com o José Maia ele explicou que era essa a sua intenção: esbater fronteiras e complexificar para nos fazer ver que as coisas não são simples, não são só pretas ou brancas, e para nos convidar a explorar as diferentes camadas de possibilidades.

– Ora aí está: novamente a questão da complexidade!

Miguel Mark Hitlodeu dirigiu-se à minha estante e foi direto à letra “M”. Na capa do livro azul que trouxe para a mesa, Edgar Morin sorria para nós.

– O José Maia conhece bem o nosso Morin – afirmou Hitlodeu com um sorriso cúmplice, remetendo para outras conversas em que partilháramos a nossa admiração pelo sociólogo francês. – La Voie pour l’avenir de l’humanité: aqui está tudo bem explicado, Professora, é mesmo este o caminho que temos de seguir se queremos ter um devir!

Hitlodeu esboçou um sorriso ao aperceber-se de que rimara, mas prosseguiu:

– E os operadores de complexidade de Morin, Professora, lembra-se deles?

Olhei para Hitlodeu com um ar divertido. Falei pausadamente, como a boa aluna a quem o Professor pede que recite a lição:

– Primeiro: Operador Dialógico – juntar o que normalmente está separado; pôr em diálogo o que não comunica…

Miguel Mark Hitlodeu anuía com a cabeça ao mesmo tempo que apontava para as fotos dispostas em cima da mesa.

– Segundo: Operador Recursivo – abandonar a lógica causa-consequência; fazer a consequência operar sobre a causa…

– Muito bem, Professora – interrompeu Hitlodeu, continuando a apontar para as fotos –, fazer o desejo operar sobre o presente, deixar a ideia de futuro influenciar o que fazemos no hoje.

– Terceiro: Operador Holístico – procurar ter uma visão abrangente das coisas, ir para além do seu conhecimento parcelar. Esta é uma das imagens de Edgar Morin de que mais gosto: se olharmos apenas para os fios que compõem uma tapeçaria não poderemos nunca apreciar a beleza do padrão que os fios compõem.

– Também gosto, Professora, também gosto. E agora pense só na programação da Bienal da Maia, pense na experimentação, nos cruzamentos, na forma como identidade, memória, arquivo e paisagem vão ser expostos, problematizados, retrabalhados.

– E os programas de ativação das exposições? A forma como a ideia de corpo vai ser explorada!…

– E então a ideia de trazer para o centro da exposição a dança? Não são apenas os corpos possíveis que vão ser explorados, mas também os movimentos dos corpos, a forma como se autoexprimem e se relacionam com o espaço. Acredito que o sentido de comunidade se criará ali, na sala central, entre os concertos, a projeção de vídeos, as obras de arte, as performances, as conversas: o mundo será construído naquela pista de dança!

Miguel Mark Hitlodeu bateu os pés no chão com força, como um bailarino de flamenco.

– A Bienal da Maia vai transformar-se num autêntico espaço heterotópico – resumi eu. – Vai propor um espaço e um tempo com regras próprias, fora do espaço e do tempo em que vivemos. As diferentes iniciativas serão autênticos “viveiros do futuro”, como diria Edgar Morin.

– E lembre-se de que não vai ser só no Fórum da Maia. Vai ser também fora do complexo, o convite para se pensar o futuro vai estar também estampado nos mupis digitais da cidade, vai ser disseminado pela Internet.

– Já disse ao José Maia que me quero inscrever nos passeios guiados pela cidade. Gosto da ideia de porosidade entre a Bienal e o tecido urbano.

– Pois eu já fiz pré-inscrição para os eventos gastronómicos. Achei muito interessante a ideia da degustação de algas comestíveis. E quero aprender a empratar! Numa Bienal inclusiva como esta faz todo o sentido lembrar que a culinária também é uma arte!

Olhei com mais atenção para a barriguita que despontava sob a t-shirt branca do meu amigo neo-utópico. Não estava lá da última vez que o vira.

– A ideia de inclusão sem hierarquização é, sem dúvida, um ponto forte da Bienal – concordei. – Nada é linear ou plano neste evento. E os visitantes serão convocados a participar. Sem percursos de visita pré-definidos, terão de ser eles a compor o próprio roteiro.

– Pois, o que me interessou mesmo na Bienal da Maia foi a possibilidade de observar os visitantes. Quando entrarem no Fórum, vão provavelmente sentir-se perdidos. O próprio espaço é labiríntico, e vão achar que é estranho, um novo mundo sem referências… vivemos num mundo de espelhos, só nos vemos a nós próprios e àqueles que são iguais a nós.

– Que pena tenho que o meu amigo Hitlodeu não tenha cá estado na semana passada! Byung-Chul Han esteve no Centro de Cinema Batalha a falar precisamente sobre o assunto. Vivemos numa caixa de ressonância, as redes sociais são uma bolha, só confirmamos como nossos “amigos” no Facebook quem pensa como nós, frequenta os mesmos círculos, veste as mesmas roupas.

– Não estive cá, mas conheço toda a produção filosófica desse grande pensador alemão de origem sul-coreana. Este livrinho que a Professora tem aqui – Miguel Mark Hitlodeu pegou num livro fino, com as letras A Expulsão do Outro inscritas a vermelho escuro –, explica que o grande mal da nossa sociedade é vivermos sob o signo da mesmidade.

– O grande desafio é mesmo esse: abrir o nosso pensamento ao Outro, ter curiosidade pelo Outro, desejar (fraternalmente, eroticamente) o Outro.

– E são tantas as janelas que a Bienal da Maia nos abre! – exclamou Miguel Mark Hitlodeu apontando para as nove filas de três fotografias dispostas em cima da mesa. – E por isso aceitei o convite do José Maia para visitar a Bienal. Tenho a certeza de que vou encontrar muito material para o Curso Avançado de Imaginação Coletiva que estou a criar.

– Mas quando será isso? – perguntei, curiosa.

– Não se preocupe, Professora, será a primeira a saber. Tomei a liberdade de a propor para Diretora-Adjunta do Curso no mundo não-utopiano, e ficará certamente contente por saber que o seu nome foi aprovado com louvor pelo governo administrativo da Nova Utopia.

Senti-me ruborizar de felicidade. Miguel Mark Hitlodeu enlaçou-me os ombros com um braço. O outro braço livre tornou-se longo, muito longo, enquanto o seu dedo indicador empurrava o horizonte, fazendo furos numa linha imaginária.

– É essa a nossa missão, Professora: abrir brechas no futuro para que todos possam vislumbrar mundos diferentes. É essa também a missão da arte. Por isso é tão importante a Bienal da Maia.

– É essa a nossa missão – concordei, chegando a cabeça um pouco mais à frente e apertando os olhos para entrever o que mostrava o furo que Miguel Mark Hitlodeu acabara de fazer naquele horizonte longínquo, mas tão desejado.

ensaio-conversa

Como se faz um futuro?

Júlia de Carvalho Hansen

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Como se faz um futuro

Enquanto se aproxima de você, este texto ainda se equivale ao silêncio. É como uma onça caminhando sem estalar a folhagem, pra dar o bote que aqui se projeta com intensidade (e sem remorso): o começo do tempo futuro. É o pacto profundo que se instaura a cada vez que vamos ler o que não conhecemos. Se faz o silêncio profundo dos apaixonados. Entre o suspiro desejante e a angústia do que não nos pertence, o futuro é dos entendidos: os que duvidam enquanto sabem. Está à beira da loucura, mas não saltará pra lado algum. O tempo permanece no limiar do quase. E, no entanto, não é estanque. 

O povoamento do desconhecido. Quem o habita? Certamente ali, desde antes, havia o fogo. O tempo presente craquelou uma rachadura na crosta terrestre, é o nascimento de uma fenda, um precipício, ou talvez seja o espírito de um novo tempo – a depender do humor de quem assiste e, portanto, interage, com o que vê. 

Como quem troca um olhar, por vezes o futuro ergue os olhos na nossa direção e solta um raio. Insight, coincidência, no princípio está o fim: basta ter os sentidos atentos pra perceber. O desregramento do convencional ajuda. Melhor ainda é trazer um pouco de desconfiança, ou melhor, de critério, pra desanuviar dos excessos. Há quem chame esta certeza de alucinação ecológica, outros podem nomeá-la de imaginação mística, a ciência dos desfalcados, dos que completam a vida com sentidos muito pra além do visível. Em todos os casos, eu estou deste lado. E você, onde você está agora?

*

Vamos por aqui. Vamos fazendo um círculo, dentro dele outro círculo, dentro do círculo triângulos, quadrados, oposições, formas geométricas que se desenham enquanto nós habitamos o planeta Terra. Nós, os que vivemos com o coração muito, mas muito além das nuvens. Observadores de ângulos celestes, jardineiros de impressões cósmicas.

Às vezes me pergunto se foi por falta de manejo sinestésico que as autoproclamadas ciências modernas sacolejaram pra fora do balaio a astrologia. Uma grande incapacidade de devir literário, ou melhor, de aceitar que tudo é símbolo, tudo é literatura quando se trata de imaginário, pensamento, articulação de linguagem, arcabouço histórico, relatório de produtividade, execução de sentença, arbítrio de legitimidade, etc. Quem tem medo do centauro que te cavalga, e te arqueia em si? O escorpião que habita esse texto vai te morder – e o veneno com que ele aniquila, é o mesmo que purifica o hábito de ver. 

*

A experiência começa de vez depois da participação do intervalo e do silêncio. Você não precisa escolher uma metáfora para a gênese para que ela aconteça. Também pode deixar os componentes adequados da sua interpretação dos acontecimentos para os noticiários. Imagino que você também tenha a mente cansada pelas horas passadas em frente a fontes luminosas de energia elétrica. Pela exaustão eu suponho, inclusive, que seja difícil desejar um outro mundo, quanto mais acreditar na possibilidade esperançosa de que um novo tempo – o libertador – venha mesmo a existir. No entanto, esse gérmen, essa semente (o futuro) está ali, disponível em você, bastaria colocar um pouco de repouso, muita água, adubo na medida e deixar florescer no ritmo circadiano. Mas longe de mim, afirmar que essa seria a melhor escolha. Sei demasiadamente bem que o futuro… 

*

Afinal, onde nós estamos? Violentamente interpelados pelo posicionamento político, ético, em um tempo que a destruição ambiental é climática, o hemisfério Norte em guerra, ainda fraturados pela experiência de um vírus que circulou matando milhões de pessoas e contra o qual, por (que sorte!) ciência e tecnologia, puderam existir vacinas. O mesmo que um boi come e caga na atmosfera queima um boeing ao atravessar a carne amazônica para a Arábia Saudita.  Ou para a China. A circulação de informação virtual é mais real do que um aperto de mãos? Quantos likes, curtidas, gostadas, você apertou em um dia? Parece que o espaço digital é feito para nos entorpecer das escolhas fundamentais, as que vão, certamente, ser responsáveis por salvar (ou não) a nossa (humana) possibilidade de ambientação na Terra. Ela, o planeta – que não precisa de nós.

Na astrologia Júpiter e Saturno são chamados de cronocractores, marcadores da temporalidade. Em termos muito gerais, o que Júpiter expande, Saturno contrai. Onde este firma no não, aquele exagera no sim. São curiosas algumas regularidades que as relações geométricas entre eles compõem. Uma vez que ambos começam um ciclo fazendo conjunção11. Um aspecto astrológico de zero graus de distância entre planetas, o mesmo que acontece entre Lua e Sol em toda Lua Nova. num determinado elemento (que pode ser Fogo, Terra, Ar e Água), as conjunções entre Júpiter e Saturno seguem se repetindo somente no mesmo elemento por 180 anos, quando se inicia uma fase de transição, que dura cerca de 60 anos, até que as conjunções passam a acontecer no “novo” elemento, por onde os dois planetas vão se encontrar por mais 180 anos. São repetições e constâncias, que marcam uma espécie de teor temático do tempo. 

O ano de 2020 foi o último de um ciclo de relações entre Júpiter e Saturno no elemento Terra, fim de ciclo cuja transição começou a acontecer nos anos 1960, ciclo este que começou em 1782. O (provavelmente) ano mais difícil de nossas gerações foi o fim de uma época em que a exploração exaustiva dos recursos materiais do planeta, as trocas mercantis globais, o avanço das máquinas… se esgotou enquanto viabilidade. Resta a pergunta: se a Era de Terra acabou, o que faremos com a Terra? 

Em 2020 um tempo acabou. 2021 foi o ano zero; 2022 o ano 1. Estamos em 2023, o ano 2 de uma Época de Ar. E, do que trata o ar? De tudo aquilo que circula de forma invisível e nos conecta: sejam informações, vírus, ideais, pensamentos, o que consideramos como humano, o que escolhemos partilhar entre nós, o planeta. Sim, é só o começo de um outro teor do tempo. 

*

Como se faz um futuro? 

O que se leva na bagagem?
O que se escolhe? 

Passamos o dia a conceder consciência às coisas.
Começamos pelas formigas, porque os seus minúsculos gestos
chamaram a nossa atenção, de afeitos que somos ao trabalho.
Na hora do repouso foi inevitável invejar
a dignidade com que os gatos descansam
o constante saber do intervalo

o alongamento como método da transcendência
mas não só eles têm o domínio total dos atributos da beleza
como conferimos também, resolvemos levar
na bagagem das escolhas a agressividade das rosas
cobertas de gentilezas são as suas pétalas tão manipuladoras.

O cerne de um búzio carrega mais mensagens
do que eu e você nos nossos históricos de whatsapp sem dúvida
uma trepadeira escalando um muro sabe melhor o que fazer. 

Dizem que as aranhas aprenderam como fazer a teia
ainda antes de nascerem e que um labrador bem treinado
corresponde à mais de 2.000 comandos enquanto nós
nunca conseguiremos notar à distância o que um cão fareja. 

A laca do interior da concha aproveitou o vazio do tempo
enquanto eu ou melhor

você se olhando no espelho, esperando uma mensagem
se vendo envelhecer sem fazer nada com o passar do tempo
enquanto uma pérola aprendeu a acumulá-lo em si
reluzindo feito um menina-deusa
pra onde apontar a consciência de se ter consciência?

Lá do fundo do seu amálgama
confuso e decidido
entre raízes e fungos 
o ventre da Terra
completamente alheio
à nossa necessidade de conceder consciência às coisas
para fazer ela – a Terra, sobreviver.
É que coube a nós a tal da vaidade da destruição.

Mas disso eu também não tenho certeza.
Tive a impressão de que o chão nos sorriu. 
Às vezes, quando presto atenção demais, eu me distraio.
E, se isto não é a loucura, certamente é o futuro.

*

Antes disso, o excesso poluía as formas. Foi a partir da entrada de Plutão em Aquário, poucos dias atrás, que algumas distribuições das trocas entre as pessoas começaram a mudar. Foi pedido, em primeiro lugar: radicalidade. Em segundo lugar, que alguém levantasse a solidariedade dos escombros, a removesse dos remorsos da culpa, ou de ser a última alternativa em casos de guerra, fome, peste e miséria. A solidariedade foi encontrada debaixo do barro, depois de uma fogueira ter crepitado tanto por cima, que a reavivou. É que no futuro não queremos a culpa, mas a sua substituição pela responsabilidade. Foi pedido em terceiro lugar: a ausência de pedidos, afinal ninguém foi sequestrado. Tudo isso se trata, a partir de agora, da liberdade. É o futuro, afinal. Há séculos estamos tentando. 

A liberdade começa e retorna na capacidade do imaginário imaginar. Afinal, Netuno está em Peixes já faz alguns anos. O visionário. Temos poucos anos para conseguir ver. Dentro de dois ou três, Netuno estará em Carneiro, já será o caso de agir, simplesmente. Por hora, podemos ver. E aí habita um dos problemas do futuro: é que nossas imagens sobre ele são, necessariamente, feitas antes e se tornam, tão rapidamente, obsoletas. Sobretudo as do cinema, ou mesmo dos videoclipes. A imaginação de grandes pragas (já estão acontecendo) ou, por exemplo, o que a tecnologia da inteligência artificial coloca em xeque de questões éticas (já está acontecendo). Por que em tantas imagens do futuro as coisas se ligam através de tubos de conexão, ou por que no futuro há tantas luzes neon? Eu mesma imagino, infelizmente, um futuro em que as plantas têm sede, estão ressequidas, sentindo falta de situações em que o calor é menos austero. Mas mesmo isto, será uma imagem ultrapassada um dia?  

*

 
Agora. O que escapa do registro obsoleto do presente se firmando em passado, é o oráculo. Porque ele fala através da abertura de códigos, não de suas travas. E as imagens que o oráculo interpreta tem ouvidos de conchas marinhas, fazem um zumbido profundo que é todo esburacado de sentido e, no entanto, soa na nossa sensibilidade. O oráculo acontece como o poema: é materialização verbal, na fronteira multidimensional dos tempos, a linguagem.  

*

Aí o risco do desenraizamento dos visionários. Ir parar em um lado qualquer do tempo. Por isso, o primeiro instrumento para alguém interessado em astrologia: tenha os pés onde você tem: na Terra, no seu caminho. Conheça o seu caminho, respeite o seu chão. Toda observação astrológica acontece do ponto de vista terrestre. O centro da circunferência de uma carta (ou mapa) astral é o lugar, a localização a partir da qual esse mapa se traça. Entre as muitas coisas para qual a astrologia funciona, talvez a principal seja mostrar onde se está no caminho. e como ele é. Se ele trepida, se é plano ou esguio, por onde chove canivetes ou amanhã fará sol. Não é fácil ter os pés puxados pela gravidade terrestre, manter o queixo pra frente, acentuar a respiração, integradamente. Mover-se no espaço-tempo.

*

DESTINO 

Caminho que se altera
passo a passo 
e firme nos espera
no espaço. 

*

Caminho! Eis uma palavra potente. Ativa, tanto por incluir o verbo caminhar conjugado no presente de primeira pessoa do singular, como por ser o substantivo caminho, um percurso, lugar trilhado no espaço por onde se atravessa. Em muitas tradições espirituais o caminho é uma presença constante, amálgama simbólico que, sendo uma metáfora da vida, integra uma mistura entre o destino, a afinação, a escolha, o método. 

Uma carta astrológica é um mapa: narra e mostra o caminho. Mais do que “o que vai acontecer” interessa saber, mostrar e reconhecer: o que está acontecendo em onde estou? E se eu virar para o lado de lá? Reconhecer o caminho em que estou e que, sou eu, o caminho. O caminho que me caminha. Mas vou voltar a falar em literatura, se não isto ainda vira auto-ajuda e não, não é por aí, o meu caminho.

*

A receita existencial para uma predição é feita de muitas partes. 

Estudar bem os códigos que abrem as chaves, as portas, as orações que ainda não foram compostas. Depois (e durante) um certo acúmulo, repousar nos pés do incerto como quem faz um piquenique, não temer as chamas do absurdo que é estar viva, um corpo de carne na carne das coisas e saber, que na maior parte dos casos, o acaso é um tempero do fundamental. 

Cabe aceitar com alegria que só há controle na vida atuando como a respiração, que é automática, por mais que se possa induzir. Entregar-se aos pulmões plenos. Depois de feitas essas rezas, abrir o espírito pelo topo da cabeça e então, finalmente, pousar os pés no chão, se espreguiçar e então reconhecer que, justamente, só existe o singular se este é interligado a tudo. É por isso que nos aprofundamos em nós, nos pesquisamos, nos inteiramos no singular que nos coube: nessa inteireza do singular que é radicalmente mútua. 

Você, se respira, está em troca, não só com o oxigênio, mas com as plantas em volta. O eu existe em contexto: histórico, social, político, ambiental, sinérgico, onírico. Tudo isso também é você. Não há unidade que não esteja na mutualidade. A consciência das plantas respirando uníssona, a fotossíntese enquanto síntese imagética do modo que tudo existe. É aí, está o futuro. Falta alguém que possa reconhecê-lo. 

*

E isto nos remonta a ideia de que, para criar um futuro, é preciso um oráculo: a voz que atravessa os tempos do mútuo. Afinal, sempre que um oráculo fala, o destino se altera. No mais, das partes visíveis, o mundo há de tratar. O oráculo será alimentado de saberes trágicos e fatídicos, misturados a uma potência inconformista de transformação. A intensidade do particular e a ramificação do possível, que é como uma espécie de óleo para a máquina da postura, o que azeita o gesto. São as possibilidades do aberto, é o que nunca fica obsoleto. 

*


Não faz muito tempo soube como Tirésias, o oráculo, ficou cego. Eu, que o imaginava no eterno, cego como sempre, desde o princípio. Ovídio nos conta sobre a causa de a cegueira ter começado numa contenda advinda de uma mistura do tédio despreocupado com a ação do néctar, conflito entre o casal de supremos deuses, Júpiter e Juno. Para provocá-la, Júpiter diz a ela: “não há dúvida de que o vosso prazer é mais intenso do que aquele que os homens sentem”22. Ovídio, Metamorfoses. Tradução de Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017, p. 185.. A deusa fica ofendidíssima, afinal, defende que as mulheres são mais capazes de proporcionar prazer do que os homens.

Como cada um só é capaz de conhecer a própria experiência, os dois resolvem convocar para a decisão Tirésias, afinal ele “conhecia o prazer dos dois sexos, pois, havendo ferido a golpes de bastão duas grandes serpentes que copulavam na verdura da floresta, é mudado, coisa prodigiosa, de homem em mulher, e assim vivera por sete outonos”33. Ovídio, Metamorfoses. Tradução de Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017, p. 185.. Viveu o que tinha que viver, experimentou o que pode experimentar e, depois, Tirésias encontrou novamente as serpentes, fez o mesmo gesto, e retornou de ser mulher a homem. Enfim, por conhecer o prazer do gozo sexual sendo homem e mulher, Tirésias foi convocado para resolver a contenda. 

Parece que Tirésias respondeu algo como: “se o prazer amoroso for dividido em 10 partes, 9 delas cabem ao gozo da mulher”. Juno, que afirmava o contrário, ficou furiosa e, imediatamente, cegou Tirésias. Para compensá-lo, e porque é impossível a um deus desfazer o feito de outro, Júpiter concedeu a Tirésias a capacidade de saber o futuro. 

*

Disto, infiro algumas interpretações totalmente livres: a primeira é que, além de cego, para ser oráculo, é preciso conhecer todos os lados de uma questão, além de ter sido ferido pela violência de ser o escolhido pelos deuses, num julgamento feito para aliviar o tédio prazeroso das suas existências. É deste lugar, a sabedoria do limiar, do conhecimento do mútuo – é deste lugar o futuro a criar. 

No mais, que a pessoa do futuro é “mulher-homem” é algo que já sabemos quando nos atemos ao presente. É preciso praticá-lo. E também, finalmente: é preciso levar o prazer, o sexo, o gozo, para o futuro.

*

O futuro? Tem orelhas,
mas é surdo. E é manco.
Se arrasta, sem espanto
mais alheio do que lúcido
com o nosso despreparo.

Se fosse um deus amava o humano, mas como não existe 
o futuro tem de amansar seus ventos, marcando as peles, 
as montanhas. Sendo um gênio, não é um exército
de cronogramas, nem de antecipações.

Tem firmeza de flor. E é
invisível, reconhecido
por seus efeitos de brisa
furacão. Nunca adiado.

Não tem nada a ensinar
no entanto é um mestre
dizem os esgrimistas
os observadores de saltos
os gatos também 
aprendem certos truques com ele.

E se ama os despreparados
lhe sabem tanto os que fazem
quanto os que esperam. 

Os otimistas valem mais
valem quanto? 
Cem bifurcações,
sucessivas gerações
de bem-aventurados 
que topam em pedras
cicatrizam e correm
bem alimentados
com fome de mais
alimento.

São seus sinais
os imprevistos, os cavalos
os pontos cardeais
os cinco sentidos  
e os sete buracos da cabeça.

*

Como começar um futuro?
É preciso água.

ensaio poético

O fio do futuro, sem previsões

Liliana Coutinho

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O fio do futuro, sem previsões

Escrevo a partir de um futuro que, por o ser, não existe. Só porvir, sem previsões ou conjeturas, sem expectativas, mas com desejos que vêm do lugar desperto onde ainda nem sequer há desejo porque há só abertura e potência de relação. Contentamento, encantado, depois e durante o atravessamento de todos os despojos que o anjo da história continua, de costas, sempre de costas, a atravessar. Cortante e latejante em azul e em cristal, abrindo fendas e frinchas por onde nos inventamos e reinventamos, nos reescrevemos e redesenhamos, nos reforçamos e fragilizamos. De onde, como bem se lembram os falantes de Mapudungun,11. “Língua terra e visão do mundo entre o povo mapuche”, Elisa Loncon Antileo, em O desejo de viver em comum, vol. 1, Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa e Edições tinta-da-china, 2019. , ; ver também mesa redonda “Da relação com a terra”, ocorrida no teatro Maria Matos no âmbito do ciclo Questões Indígenas: https://www.youtube.com/watch?v=T5YHCoN7SAQ a língua da terra, as palavras escorrem dos vários mundos para os interligar – entre eles, as palavras revelam-se como caminhos –, e a mentira nada mais é do que um bloqueio de quem a pronuncia, um corte, uma extração, de si próprio nesta relação com um fora. De uma terra que existe no movimento de quem escreve e desenha e dança e outras tantas formas de fazer esse terreno que existe, mas que não se agarra, que nos possui, mas que não podemos possuir, que mais do que pisarmos, nos atravessa. De onde artistas, filósofos, pensadores, fazedores e imaginadores vários são evocados, aqui, como pedras de ancoragem para uma caminhada e, talvez logo a seguir, rolem também eles por esse terreno em movimento. 

Esse futuro está no fio sonhado de “Baba antropofágica” (1972) de Lygia Clark, no qual, dançando, Lia Rodrigues22. Em entrevista a Suely Rolnik, Lia Rodrigues, a propósito da sua intervenção na exposição retrospectiva que foi dedicada a Lygia Clark, no Palácio Imperial do Rio de Janeiro, em 1998: “ (…) On a fait aussi Bave, une de ses oeuvres les plus fortes, qu’on ne peut compreendre qu’en prennant part. C’est une chose dégôutante mais aussi bouleversante, perturbatrice, qui lui est venue en rêve. », Rodigues, Lia e Rolnik,Suely, « Des souleèvements sensibles. Dialogue à partir de l’œuvre de Lygia Clark », em Launay, Isabelle e Soter, Silvia (dir.), La passion des possibles – Lia Rodrigues, 30 ans de compagnie, Paris : Éditions L’Attribut, 2021, p. 245. pega e o qual João Fiadeiro, continua a torcer: “começa a torção.”33. Também para João Fiadeiro a obra de Lygia Clark é fonte de diálogo, em particular a sua performance de construção da fita de Moebius. Acerca desta fita, figura geométrica utilizada na explanação da Composição em Tempo Real desenvolvida por este coreógrafo, escreve-se: “Expõe também o principio do tempo circular e finito que dura uma combinação/opção (antes de ser ativada ou rejeitada)”. Em Fiadeiro, João, Composição em tempo real, anatomia de uma decisão, Lisboa: Ghost Editions, 2017, p.33. O tempo e o espaço são como uma fita de Moebius. Escreve-se a partir de um futuro muito antigo, portanto. Ancestral, como o sentiu Ailton Krenak: 

Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.44. Krenak, Ailton, O futuro é ancestral, São Paulo, Companhia das Letras, 2022.

Um futuro em forma de rio que nos chega. Escreve-se a partir, partindo, portanto, para uma viagem sem tempo passado, presente ou futuro. De uma condensação do tempo, esquecido da sua linearidade e da arrumação que lhe damos para arrumarmos a nossa história e os nossos afazeres quotidianos. Ou como escreveu T.S. Elliot: “Ide, ide, ide, disse o pássaro: a espécie humana / Não pode suportar muita realidade. / O tempo passado e o tempo futuro, / O que poderia ter sido e o que foi, / Apontam para um só fim, sempre presente.”55. Excerto do poema “Burnt Norton – Quatro Quartedos”, de T.S. Eliot, disponível aqui: https://novaziodaonda.wordpress.com/2011/10/10/quatro-quartetos//, publicado em Português pela Editora Relógio de Água.

Adensa-se o tempo presente, condensa-se e dilata-se, simultaneamente, como quem volta ao momento da origem de tudo, o espaço. O filósofo David Abram, no texto “A ecologia da Magia – uma introdução pessoal à investigação”, conta um passo dado que o fez cair neste pulsar:

Certa noite, saí da minha pequena cabana nos arrozais do leste de Bali e vi-me a cair através do espaço. Acima da minha cabeça, o céu negro ondulava com as estrelas, densamente agrupadas em algumas regiões, quase bloqueando a escuridão entre elas, e mais vagamente espalhadas em outras áreas, pulsando e acenando umas para as outras. Atrás delas corria o grande rio de luz com seus vários afluentes. No entanto, a Via Láctea também se agitava debaixo de mim, pois a minha cabana ficava no meio de uma grande colcha de retalhos de plantações de arroz, separadas umas das outras por estreitos diques de meio metro de altura, e essas plantações estavam todas cheias de água. (…) à noite as próprias estrelas brilhavam na superfície dos arrozais, e o rio de luz girava através da escuridão sob os pés, assim como acima; parecia não haver chão diante dos meus pés, apenas o abismo do espaço estrelado caindo para sempre. Eu não estava mais apenas sob o céu noturno, mas também acima dele – a impressão imediata era de leveza. Poderia ter sido capaz de me reorientar, de recuperar algum senso de solo e gravidade, não fosse um facto que confundiu totalmente os meus sentidos: entre as constelações abaixo e as constelações acima vagavam incontáveis ​​pirilampos, com as suas luzes piscando como as estrelas, alguns flutuando para cima para se juntar aos aglomerados de estrelas, outros, como meteoros graciosos, deslizando de cima para se juntar às constelações sob os pés, e todos esses caminhos de luz para cima e para baixo também se refletiam na superfície imóvel dos arrozais.66. “One evening I stepped out of my little hut in the rice paddies of eastern Bali and found myself falling through space. Over my head the black sky was rippling with stars, densely clustered in some regions, almost blocking out the darkness between them, and more loosely scattered in other areas, pulsing and beckoning to each other. Behind them all streamed the great river of light with its several tributaries. Yet the Milky Way churned beneath me as well, for my hut was set in the middle of a large patchwork of rice paddies, separated from each other by narrow two-foot-high dikes, and these paddies were all filled with water. The surface of these pools, by day, reflected perfectly the blue sky, a reflection broken only by the thin, bright green tips of new rice. But by night the stars themselves glimmered from the surface of the paddies, and the river of light whirled through the darkness underfoot as well as above; there seemed no ground in front of my feet, only the abyss of star-studded space falling away forever. I was no longer simply beneath the night sky, but also above it—the immediate impression was of weightlessness. I might have been able to reorient myself, to regain some sense of ground and gravity, were it not for a fact that confounded my senses entirely: between the constellations below and the constellations above drifted countless fireflies, their lights flickering like the stars, some drifting up to join the clusters of stars overhead, others, like graceful meteors, slipping down from above to join the constellations underfoot, and all these paths of light upward and downward were mirrored, as well, in the still surface of the paddies” https://projects.iq.harvard.edu/files/retreat/files/abram_the_spell_of_the_sensuous_perception.pd, p. 13

 

Um passo que abriu uma falha, e nela, um abismo, uma queda num rio de luz e seus afluentes. Uma falha que poderia ser um falhanço, uma simples falta de orientação, mas que é abertura para essa grande zona de potência que é a do não saber, a mesma que habitamos quando entramos no espaço futuro. As estrelas e constelações de Abram eram estrelas espelhadas na superfície das águas e pirilampos, que esvoaçavam sob um céu estrelado. Teria sido para ali que foram os pirilampos desaparecidos de uma Itália – e quem fala de Itália, fala de outras geografias também – que preencheu e continua a preencher os seus vazios de fascismos sobreviventes, contada por Pier Paolo Pasolini? “Eu daria o Montedison inteiro, mesmo sabendo que é uma companhia multinacional, em troca de um pirilampo!77. A este propósito ver: “Disappearance of the fireflies“. Montedison é o nome de um grande grupo financeiro e industrial italiano.” Em troca de uma vida não uniformizada, marcada pela diversidade e singularidade: “(…) – e quem se lembra dos deslumbramentos dos pirilampos e das peles arremessadas ao mínimo aguaceiro?”88. “Chaque heure à sa sentence derrière les persiennes closes – et qui se souvient des éblouissements de lucioles et des fourrures jetées à la moindre ondée ? » Haddad, Hubert, Errabunda, ou les proces de la nuit, Bastia : Ed. éolienne, 2011, p.25.

David Abram caiu depois em si, “retomou o sentido do chão e da gravidade”, arrumou o cosmos e as estrelas mantiveram-se no lugar de onde não deveriam ter saído, mas a partir daí, sem esquecer esse desatino inebriado, fez o caminho da filosofia que se concretizou num livro. Como Ursula K. Le Guin, ao escrever as suas histórias e contos, abriu a cesta para nela recolher estrelas caídas: “Ainda há sementes para serem colhidas e espaço no saco das estrelas.”99. Le Guin, Ursula K. « A Ficção como cesta: uma teoria”, em A ficção como cesta: uma teoria e outros ensaios, Lisboa: Dois Dias Edições, 2022.

Quando no caminho surge uma pedra muda ou uma falha, como habitá-la e existir nesse abismo? Acolher o que ela nos oferece e não passar ao lado, como se o caminho fosse todo ele liso e sem resistências, linha projetada pela nossa mente, incapaz de se encontrar e de pousar num terreno concreto e real, porque comum, com a dificuldade que é ser comum e real. João Fiadeiro, mais uma vez, ajuda-nos bem a conceber esta queda:

João: (…) a minha aprendizagem é sobre como não saber. A minha aprendizagem não é como saber.

Liliana: É interessante. Tu disseste há pouco que o teu receio – e depois acho que tenho de rever se foi mesmo esta a palavra – é de não teres nenhum sítio onde te agarrar na queda, não é? E geralmente o saber é essa forma de nos agarrarmos, não é, rapidamente agarramos para não cair. Mas, enfim, no teu processo, no teu trabalho…

João: É por isso que tem sido tão difícil, ao longo dos anos, explicar ou partilhar esta prática. Porque as pessoas tendem, eu incluído, a olhar as coisas de uma forma binária, não é? Ou seja, ou estás agarrado a alguma coisa, ou estás em queda livre, como se não houvesse nenhuma alternativa entre as duas coisas, não é? Ou sabes o que estás a fazer, ou não sabes o que estás a fazer. Ou deixas-te ir, ou controlas tudo o que está a acontecer, e pronto.1010. Entrevista a João Fiadeiro, realizada por Liliana Coutinho, realizada no final do ano 2022, não publicada.

Sobre este espaço não binário, Ailton Krenak diria que, sendo tão amantes do abismo e do princípio do prazer, deixemo-nos cair mas criemos paraquedas coloridos, para que a queda seja prazerosa: 

Já entrámos em diferentes escalas e em diferentes lugares do mundo. Mas temos medo do que vai acontecer quando a gente cair. Sentimos insegurança, uma paranoia da queda porque as outras possibilidades que se abrem exigem implodir essa casa que herdamos, que confortavelmente carregamos em grande estilo, mas passamos o tempo morrendo de medo. Então, talvez o que a gente tenha de fazer é descobrir um paraquedas. Não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos. Já que aquilo de que realmente gostamos é gozar, viver no prazer aqui na Terra. Então, que a gente pare de despistar essa nossa vocação e, em vez de ficar inventando outras parábolas, que a gente se renda a essa principal e não se deixe iludir pelo aparato da técnica.1111. Krenak, Ailton, “A humanidade que pensamos ser”, em Ideias para adiar o fim do mundo, São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 62-63.

Saber que é no movimento da queda amparada que, talvez, encontremos um outro lugar que nos acolhe, esse futuro que já está, mas do qual por vezes perdemos a chave para o habitar.

Dénètem Touam Bona, um filósofo que nasce na Europa mas tem raízes longas rizomáticas no vasto território, físico e imaginário, que apelidamos de África, refere-se à Sabedoria das Lianas1212. https://www.post-editions.fr/SAGESSE-DES-LIANES.html como uma sabedoria densa, múltipla, que nos impele a aprender a avançar pela opacidade, numa espécie de queda horizontal nesse espaço densamente entrelaçado – tão diferente do imaginário da floresta virgem e vazia, por onde o espírito e os corpos coloniais avançaram, cheios de saber e ignorância – que nos permite percorrer vários estratos. Como nos nove mundos mapuches, suspender a gravidade da queda e trepar, voltar a cair, caminhar por entre as lianas – o que liga, descobrirmo-nos, também, lianas: “(…) somos menos que indivíduos (do latim individuum: indivisível) que nós de relações. Caminhar no mundo é sempre retomar histórias e circunstâncias que não escolhemos, mas que nos oferecem um material único a obrar, enquanto lastreamos as nossas vidas com um peso tão ambivalente quanto necessário – um peso que tanto nos carrega como nos suporta”.1313. « (…) que nous sommes moins des individus (du latin individuum : indivisible) que des nœuds de relations. Cheminer dans le monde, c’est toujours reprendre des histoires et des circonstances que nous n’avons pas choisies, mais qui nous offrent un matériau unique à ouvrager tout en lestant nos existences d’un poids aussi ambivalent que nécessaire – une pesanteur qui à la fois nous charge et nous porte. », Touam Bona, Dénètem, Sagesse des lianes – Cosmopoétique du réfuge, Fécamp : Post-Éditions, 2021, p.41 A Utopia, o bom lugar, de Touam Bona, não é um lugar ao qual se chega para sempre, no final da queda. É um movimento, uma fuga em permanência, como fugas são as de Bach, um movimento contínuo que passa de lugar a lugar, e por isso vai, de repetição em repetição, de variação em variação, instaurando lugares e possibilidades de vida. Uma fuga para fora que, como escreveu Frederic Neyrat: 

O fora é a falha renovada do mundo, aquela que se abre a cada nascimento, a cada ventre que dá vida; falha que ocorre com os eventos não orgânicos que separam as coisas de si mesmas; lacuna que se apresenta com cada obra de arte.1414. « Le dehors est la faille renouvelée du monde, celle qui s’ouvre avec chaque naissance, chaque ventre donnant vie ; faille qui advient avec les événements non-organiques qui disjoignent les choses d’elles-mêmes ; écart qui se présente avec chaque œuvre d’art. », consultado a 13 de setembro 2022, em https://www.cairn.info/revue-lignes-2014-2-page-115.html

Um movimento que, de queda, se torna atravessamento, do mundo e de nós mesmos simultaneamente, como se as lianas exteriores se revelassem também no nosso sistema venoso e a falha, o abismo, o lugar da queda, por onde escorrem as palavras-liana, se revele o espaço e o fio do futuro-já-presente (um tempo que deveria talvez inscrever-se na gramática), de onde surjam múltiplas vidas, ruderais – aquelas que nascem em lugares fortemente perturbados pelo gesto humano. Sem previsões. Em celebração.

 

Abril 2023

ensaio

Dez poemas no café convívio

Hugo Miguel Santos

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DEZ POEMAS NO CAFÉ CONVÍVIO

Mas de que falas tu? De ti? Do mundo?
Ou do intervalo em que te aceitas outro,
precisamente quando mais te julgam tu?
A pouco e pouco, nascerás de tudo.
Tu próprio, todavia, não disseste que
«anoitecendo a vida recomeça»
?

Jorge de Sena

 

A mão
estende-se à mão
recria
a criação
(…)
O poema
imprime
Convívio.

Ruy Cinatti

 

 

 

BALADA DO AGENTE FUNERÁRIO:
ALLEGRO MODERATO EM FÁ MENOR

para o Changuito                      
Yo, que tantos hombres he sido, no he sido nunca                      
aquel en cuyo abrazo desfallecía Matilde Urbach.                      
Jorge Luis Borges                       

 

Tenho morrido, senhor,
e visto na morte sofrer
sustento,

vivo em meu solo
assento: um cemitério
desordenado.

Nego amor
e o dinheiro ergo aos céus
num vaso de lágrimas.

Sigo,
meu etéreo amigo, e leve
caminho por entre tascas
e viúvos dromedários:

nenhum consolo nos resta,
nenhuma dormência,

lembro
certas flores, incertas velas
contra o vento eriçadas.

E, assim, passo
pelo tempo, em teu louvor,
sem eternidade:

vendo no pior dos mundos
possíveis, a melhor das passagens.

 

 

 

RUA DOS MÁRTIRES DA LIBERDADE

para o Manuel de Freitas                      

Tenho deixado a literatura
em sítios mais convenientes:
pensões de uma só noite, jardins
onde um lírico olhar falaria
do dia claro dos amantes.

Mas ela regressa, enlaçando-me
as pernas com a sua cauda, roça-se
com as orelhas
já quase encarquilhadas. O Sr. Joaquim
desce a rua, dá-lhe um osso
carregado
com a fome e o desassossego
que lhe preenchem as noites
cada vez mais brancas,

como um delírio de neve
num romance russo. Oferece-me
um desenho, pede-me um poema.

E eu abro este caderno, sem antes deixar
de lhe pagar uma sandes de panado
numa tasca cujo nome oculto,

não vá um turista matar-nos a saudade.

 

 

 

CAGA-CONTOS

para a Ângela Silva                      

Pudesse topar na memória
o rosto dessa mãe mendicante,
encostada às tílias
dos azulejos,

enquanto tragava a sopa
e um pedaço de pão.

Foi, como tantas senhoras
da sua idade, menina
até aos dez. Depois,
deixou a escola, casou-se,
trabalhou o mais que pôde.

Esmurrada, acossada,
era tanto o desamparo
que guardava
apaixonada um retrato
do marido alcoólico
e dos dois filhos

que lhe trocavam
as poucas joias
pela prata da droga.

Não me lembro
do seu verdadeiro nome.

Durante anos,
estranhei esta alcunha
de caga-contos.

Só pouco após a sua morte
é que entendi melhor
a sua sorte:

cagava histórias
em troca de uns trocos.

 

 

 

MISS PNEU

para o José Filipe Alexandre                      

A caminho da lota negra,
deitado num carrinho,
lembro-me de ouvir surpreendido
o seu cognome de estimação.

Era ruça,
de porte basto, brusca,
e dizem que deitava em segredo
um amante no busto: eu
ainda o imagino,

náufrago
entre dois seios, beijando-a.

Tudo isto se passou
antes dos tele-discos, dos reclames
com miúdas magríssimas
em lingerie.

Ninguém usava leggings,
nem tops, nem tik toks: comia-se
contra a lembrança do fascismo.

Lembro-lhe os olhos verdes
e um sábio ditado: pior pecado
do que a morte,

é deixar-se à morte sem comer.

 

 

 

BEM MAIS DE MIL ANOS
APÓS A MORTE DE AL-FARABI: UMA MEDITAÇÃO

para o Hugo Carvalheira Neves                      

Num velho livro
amarelecido pelo esparso
tempo de um sótão, encontro
estas duas páginas
vazias.

Um dia saberemos
que livro nenhum do mundo
nos disse melhor a raiva, o amor,
as mãos que os separaram

do que estas duas páginas
à espera.

E que a vida,
à semelhança do jazz,
se limita a repetir
em novas vozes

acordes, improvisos
e desastres.

 

 

 

ACIDENTES GEOGRÁFICOS

para a Rosa Maria Martelo                      

A poesia
é uma grande rede
de canais subterrâneos
que une apátridas vindos
de todos os tempos,
por toda a parte.

Kabir,
por exemplo,
é-me mais próximo
do que Alcácer-Quibir

e o inglês
de A.E. Housman
mais límpido e exacto
do que os formulários
das finanças.

As línguas servem-nos
como passaportes
forjados,
entre os resquícios
da burocratização
do tempo e da justiça.

E os poemas
fazem-se nas margens
opostas à propriedade:
contra todos, com todos,
sem divisão,
em nenhum lado.

Um infinito espaço,
este onde falamos,
como ilhas –

sem rosto e sem idade.

 

 

 

ANTÓNIO

Dizem-me que morreste, António,
nos teus oitenta e oito anos de alegria,
no mesmo dia do aniversário do Pina,
e eu alegro-me por saber
que entre o velho
sob a terra adormecido
e o menino sobre ela acordado
existe um laço de pedras e de palavras
que une os mais antigos segredos e vestígios
de um tempo em que os deuses nos habitavam.

Nós, os da graça e da glória despojados,
nós, os filhos desta glosa tardia
que ainda teimamos
em selar versos
com pedaços de lã
e de lava, nunca seremos nada,
se não soubermos agraciar do lirismo
a orfandade que tu e tantos mais
nos outorgaram.

A poesia, agora,
corre até às margens da prosa,
até às margens do tédio,
porque jamais poderia ficar parada,
correndo o risco de naufragar
num pequeno poço de lodo
e de óleo,
mas ela acabará sempre
por regressar à onírica tracção
de um tractor cansado
após muitos anos
de sementeira e mosto.
E jamais esquecerá o arrumador,
a padeira ou o sapateiro,
por mais que cite messengers,
googles ou wallmarts.

Daqui a quanto tempo o mundo acabará,
sabe-o um pequeno melro,
em silêncio,
que ignora o outono.

Tu nunca poderias ter partido
na primavera, António. Neste tempo
de isolamento, sangue e guerra,
encontro o único consolo em saber
que as estações resistem
ao degelo dos viventes/ à chacina
dos inocentes/ em áfrica, ainda mais,
como sempre/ não bastasse a desflorestação
em troca de baterias/ ainda lhes vendemos
o lixo das nossas drives.

É um consolo, dizia, saber
que partes com os pássaros para esse lugar
onde o azul resiste às crises de abastecimento.
É justo ires para um lugar onde não existam
golden shares, nem outros anglicismos
a poluir a nossa românica herança.

Porque sei que nesse lugar de éter
a palavra amor ainda dizemos
e resistimos
à desumanização do mundo,
caminhando de mãos dadas de um verso
a outro,

com os antigos mestres da natureza:

Camões, Petrarca, Dante,
Pessanha e Osório.

 

 

 

LEONARDO DA VINCI
– RITRATTO DI UN UOMO IN GESSO ROSSO (1516)

para o Rui Manuel Amaral                      

Que um homem se faça em giz,
eis algo que inevitavelmente
me comove: encarnado
como o sangue sobre a folha, 

com a mesma leveza
das pequenas nódoas do tempo
e da humidade: assim
os seus traços

livres, por fim,
após ter apreendido a totalidade
da geometria e das cores –  

sabendo
que a gravidade não atinge
quem sempre no desenho
achou

a ausência do espaço.

 

 

 

AS ÁRVORES DE ÂNGELO DE SOUSA

Entre a garoa do carvão
e a cera colorida das copas, escondem-se
estas árvores.

Leio Diderot: em geometria,
uma quantidade real somada a uma quantidade
imaginária

dá um resultado real. Cada uma destas árvores
somou a sua parcela de realidade

para parecer um pouco mais imaginária. Algumas
reduziram-se à condição de folhas,

outras tornaram-se embriões
de antebraços.

A Inês prefere as árvores
que ignoram as margens do A4, vai com elas
para lá do visível e do imaginado.

Ignora que os seus cabelos também se estendem
para lá dos meus olhos, da minha percepção
de apaixonado. Abre-se
em mim um bosque, uma pequena fábula.

E as árvores de Ângelo de Sousa,
quietas, imunes ao vento,
adormecem

encostadas
à brancura das duas páginas.

encostadas
à brancura das suas páginas.

 

 

 

 

SEMELHANÇAS DE FAMÍLIA

Recortados
por uma janela de avião,

os Dolomitas
recordam-me as mãos da minha avó –

cobertas de sal, espinhas e bepanthene.

poesia