Júlia de Luca

O corpo caminhante de Júlia de Luca (n. 1990) inscreve-se na paisagem num registo do qual ressoa esse momento transformador em que a arte deixa de imitar a natureza para se envolver com a natureza, ou como sustenta Maderuelo, esse momento em que natureza passa a ser “sujeito, processo ou destino do ato artístico” e em que, concomitantemente, esse ato artístico não se constrói “como uma representação formal da natureza, mas com a consciência da perceção das relações entre o homem e o mundo natural”11. Javier Maderuelo, Actas arte y naturaleza del I Curso. (Huesca, Diputación de Huesca, 1995), 17.. A poiética de Luca, herdeira de uma longa linhagem de práticas artísticas como a land art ou a body art, afirma-se primeiro como performance na paisagem, recorrendo a vários meios, como a fotografia ou o vídeo, como forma de registar esses momentos performático-narrativos que são, ao mesmo tempo, percursos de pesquisa e descoberta de si mesma.

Em minha prática, observo como meu corpo responde a sentimentos e emoções. Proponho-me navegar em campos internos para trazer de alguma forma o que ainda era obscuro, muito subjetivo ou difícil de me relacionar.

Também assim aconteceu na Maia, onde a artista multidisciplinar brasileira esteve em residência. São os registos desses percursos performáticos no território maiato que se apresentam na Bienal: em junho na rede de mupis da cidade e, em permanência, na mostra de vídeo.

Texto de Carla Santos Carvalho

April

April (n.1999), drag queen e artista multimédia, nasceu e cresceu em Curitiba, no Brasil, mas gosta de afirmar que se “aprimorou no Porto”, cidade a partir da qual desenvolve atualmente a sua prática artística. O seu trabalho explora elementos de raiz transformista em articulação com a performance art. Encontramo-nos, claramente, perante um processo de busca e afirmação identitária, esse percurso contínuo em direção ao eu, “como quem vai em direção a uma meta” de que nos fala Foucault11. Michel Foucault, A hermenêutica do sujeito, trad. Márcio alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail, (São Paulo, Martins Fortes, 2006), 262., que recorre a mediums como a performance, a música ou as artes visuais. Na Maia, o trabalho de April apresenta-se em diversas vertentes: exposição, publicação, workshop, vídeo e email arte. Em termos expositivos, exibem-se uma série de toalhetes desmaquilhantes que a artista usa no final das suas performances, nos quais ficaram impressos vestígios dos rostos das várias personagens em que se desmultiplica. Imagens que não deixam por isso de ser autoficções de si mesma, retratos de um eu em permanente transformação, em perpétuo aperfeiçoamento. A 17 de junho, a artista realiza uma oficina de pintura facial, equacionando precisamente esse processo de transformação do rosto; em agosto, participa na mostra de vídeo com uma obra realizada em parceria com a fotógrafa e videasta Léa Castro Neves (n. 2002); em junho, exibem-se, na rede de mupis, os registos fotográficos das múltiplas personagens em que April se transforma, captados por Léa Castro Neves.

Texto de Carla Santos Carvalho

Mathias Gramoso com Ivy Lee Fiebig e Pedro Moraes

A preocupação com as questões ecológicas, com as alterações climáticas, atravessa a prática artística de Mathias Gramoso (n. 1990), materializando-se em intervenções e instalações no espaço público e em galerias, um pouco por toda a Europa. Há um outro traço transversal ao trabalho do artista franco-português, o facto de habitualmente se desenvolver em processos colaborativos. Assim acontece na Maia. A instalação I died once, I can die twice (2023) constitui-se como um corredor/túnel negro, de aproximadamente 15m quadrados, com duas entradas, cujo solo é recoberto por cinzas e areias provenientes de incêndios florestais recentemente ocorridos em Portugal. Uma antinómica versão An die Freude, a ode à alegria de Schiller, parte integrante da Nona de Beethoven, confronta sensorialmente o espetador, ao mesmo tempo que a luz difusa reforça a ideia de cenário pós-apocalíptico. As sonoridades perfeitas do compositor alemão entrelaçam-se com registos sonoros dos ventos Iónicos captados por Ivy Lee Fiebig (n. 1992) enquanto navegava no Mediterrâneo. A instalação sonora Lodos & Poyraz, os ventos a que a tradição popular, com raízes na mitologia clássica, também chama Ventos das bruxas (por provocarem alterações físicas e psíquicas nos seres humanos), insere-se numa prática que tem conduzido a artista alemã a territórios de pesquisa e construção de atmosferas psicológicas, microclimas reativos e espaços de experimentação em que se equacionam vida e sustentabilidade. Questões que de outra forma estão igualmente presentes no trabalho do artista paulistano, Pedro Moraes (n. 1990). A-B é uma instalação de 2m x 1m, que aspira o pó do presente, o pó invisível remanescente da ação humana e filtra-o, para o transformar em arte. Só que essa transmutação resultante do processo de filtragem das partículas do ar, só se torna possível pela passagem do tempo, é ela que reificará os pigmentos em “pintura”.  É nesta perceção de contrastes e paradoxos que acontece o trabalho de Pedro Moraes. Gramoso, Fiebig e Moraes vivem e trabalham em Berlim.

Texto de Carla Santos Carvalho

Filipa Valente

O projeto de Filipa Valente (n. 1999) Campos Magnéticos: Rede informal de espaços geridos por artistas no Porto, entre 1999 e 2022, propõe-se analisar criticamente “a problemática da relação entre a prática curatorial independente autogerida por artistas e o contexto expositivo institucional e respetiva legitimação simbólica”. A artista/investigadora e curadora identificou e mapeou os espaços geridos por artistas na cidade do Porto nas últimas décadas, ao mesmo tempo que foi registando o percurso dos artistas que por aí passaram e, por maioria de razão, observando a cidade enquanto ser vivo em permanente mutação. O resultado dessa investigação desdobra-se em múltiplas plataformas. Desde logo, num site “arquivo-vivo”, cujo propósito se enuncia a três níveis: identificar, documentar e divulgar. A participação de Filipa Valente nesta Bienal ocorre em duas dimensões: uma delas relacionada com a investigação Campos Magnéticos, primeiro em formato expositivo de representação gráfica da investigação, mas também em vídeo, email arte e uma publicação (no caso, o mapa resultante do projeto que permite ao espetador uma deriva pela cidade, fazendo o reconhecimento dos espaços mencionados); e, igualmente, na vertente residência artística, no âmbito da qual recorre a técnicas artesanais ancestrais como o ponto de Arraiolos, o bordado ou a tecelagem como forma de representação de espécies da fauna e flora lusitânica, para desenvolver um projeto que reflete sobre uma questão bem contemporânea, a problemática dos ecossistemas ameaçados, como consequência da ação humana. Como o curador José Maia gosta de afirmar, o trabalho de Filipa Valente presente nesta BACM “tal como a pista de dança [espaço central desta edição], é uma utopia realizável”. 

Texto de Carla Santos Carvalho

Teresa Bessa

Artista multidisciplinar e performer sediada no Porto, Teresa Bessa (n. 2000) recorre a meios como a pintura, o desenho, o vídeo ou a fotografia. A sua prática artística assenta, sobretudo, num questionamento contínuo da identidade, nas suas facetas existenciais, queer, feministas e sociopolíticas. O corpo e os seus contextos são, por isso, questões centrais no trabalho de Teresa Bessa. É daí que parte para a construção de narrativas ficcionais e metafóricas das quais ressoam ecos expressivos e surrealizantes.  

Simultaneamente, inicia em 2022, o projeto documental Morto. com inevitável correlação com a imagem de marca do município Porto. Trata-se de um ensaio fotográfico in progress, acerca dos processos de gentrificação, equacionando problemáticas como a dualidade centro-periferia ou as desigualdades socioeconómicas. É precisamente este projeto que Teresa Bessa traz à BACM23, desta feita investigando e percorrendo as terras da Maia e mapeando as suas idiossincrasias. O trabalho exibe-se no recinto principal da exposição e nas áreas exteriores, em 16 mupis do município, bem como numa publicação de artista.

Licenciada em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, em 2020 funda, com Beatriz Vale, o coletivo artístico Super Bronca, com o propósito de desenvolver práticas performativas de raiz experimental precisamente questionando a identidade e os limites do corpo e a sua inserção no contexto sociopolítico. A dupla Super Bronca apresenta-se em concerto na Bienal, com a promessa de sonoridades de raiz experimental, de que ressoam claramente ecos do rock feminino.

Texto de Carla Santos Carvalho

Diogo Nogueira

O projeto artístico de Diogo Nogueira (n.1999) tem um carácter autoficcional, no qual reflexões e elementos autobiográficos se cruzam com uma investigação em torno de temas basilares da história da arte ocidental, concretamente dos seus mitos fundadores e da forma como eles se repercutem na contemporaneidade. O artista, licenciando em pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, refere-se à sua prática como uma “auto-mitologia” que pretende, simultaneamente, constituir-se como uma espécie de “mitologia queer”. Especificamente no caso da obra que se agora apresenta, Lutas são feitas fora de casa, senão fica tudo sujo, cujo meio primordial é a cerâmica – mas cujas origens são a pintura e o desenho – o artista usa como referência as gravuras rupestres de Ardegães, bem como alguns objetos cerâmicos datáveis da Idade do Cobre, (partes integrantes do sítio arqueológico, localizado em 2004, no âmbito da Carta Arqueológica do concelho da Maia) e, concomitantemente, todo um referente imagético contemporâneo, pessoal e coletivo, que se reifica nesse conjunto cerâmico, do qual emana uma narrativa necessariamente ficcional que interpela o visitante da Bienal. 

Diogo Nogueira é membro fundador do projeto O Bueiro (2021), e, atualmente, é artista residente no Clube de Desenho.

Texto de Carla Santos Carvalho

Carlos Trancoso

O olhar perspetivado no trabalho de Carlos Trancoso (n.1989), é primordialmente um olhar fotográfico. É a partir dele que o artista multidisciplinar questiona as formas como o ser humano se relaciona com a tecnologia, criando imagens sem câmara, cruzando diversos meios com imagens geradas por computador.

Operando nas fronteiras entre o documental e a ficção, Trancoso questiona os padrões estabelecidos de criação imagética nas sociedades hodiernas. 

Na Bienal da Maia, o artista ultrapassa os limites da bidimensionalidade ao criar objetos tridimensionais, com recurso à impressão 3D. Refletindo sobre o conceito de documento digital, em duas vertentes, enquanto veículo de informação e simultaneamente como testemunho de comportamentos isolados num cenário virtual, a série Backup, que aqui se apresenta, usa a duplicação, a cópia, enquanto mecanismo de poder, transformando-a dessa forma em protocolo.  Os trabalhos de Trancoso iteram a ideia de que, na era digital, o “direito ao esquecimento” é uma aporia inultrapassável. Além da série Backup, apresentam-se no espaço expositivo do Fórum publicações realizadas pelo artista e podemos. Igualmente, observar alguns dos seus trabalhos na rede de mupis da cidade. In situ, propõe-se, num primeiro momento, fotografar artistas e outras pessoas envolvidas na Bienal, trabalhos que após a impressão, recorte e montagem adquirem uma natureza tridimensional. Esse efeito transformador, do “bi ao tri”, será igualmente experienciado pelo público num workshop.

Texto de Carla Santos Carvalho