Maria Paz e Leonor Arnaut   

A liberdade é um mistério,
todo dia se decifra
todo dia se disfarça11. Tom Zé, “Sobre a liberdade”, faixa 3 em O jardim da política, Palavra Cantada Produções Musicais, 1998, CD.

O trabalho de Maria Paz (n. 1998) é sobre a liberdade, sobre a emancipação. A emancipação do corpo, a liberdade de género, a liberdade de ser. E é sobretudo na escultura, em objetos cerâmicos ou de pedra, que se materializam as suas formas híbridas fantásticas, de cariz abstratizante, que, no entanto, não parecem desligadas de uma certa ideia de pintura. Esse fluxo contínuo entre a pintura e a escultura, presente no corpus de trabalho da artista é, por exemplo, observável na obra bandeira, pintura sobre tecido, cuja dimensão substancial e a forma como se dispõe no espaço acaba por lhe conferir um caráter para além do bidimensional. A relação torna-se mais evidente em trabalhos como as monstras, nos quais a pintura se torna efetivamente tridimensional. Aí, talvez mais do que em qualquer outro das peças que se apresentam nesta exposição, vêm à superfície os questionamentos de Maria Paz: a afirmação do corpo emancipado, intersexual, nutrício, vital, desmultiplicado, livre. É, de resto, a partir desta instalação, composta por criaturas orgásticas, que Maria Paz constrói um diálogo com a arte vocal de Leonor Arnaut (n. 1996), que se materializa numa instalação sonora e num concerto performativo que Arnaut fará no primeiro dia da Bienal. Um diálogo que é também um convite à transmutação dos corpos e dos sonhos para um novel território habitado por seres fluídos e livres.

Texto de Carla Santos Carvalho

Miguel Ângelo Marques

Se é verdade que é recorrente um artista ir construindo o seu arquivo pessoal imagético – veja-se como ainda recentemente foram descobertos dois cadernos de desenhos de viagens, de Eugène Delacroix, que desvelam a influência desses esboços e anotações no processo de trabalho do pintor oitocentista francês11. Eugène Delacroix, Journey to the Maghreb and Andalusia, 1832: The travel notebooks and other writings, trad. Michèle Hannoosh, (Pennsylvania, Penn State University Press, 2019). – é também certo que a importância desse arquivo se manifesta de modo diferenciado nas práticas artísticas. No caso de Miguel Ângelo Marques (n. 1994), artista cujo corpus de trabalho assenta na pesquisa de relações entre imagem e signo, esse arquivo, no caso constituído por um vasto reportório imagético pessoal e coletivo, intimamente ligado à noção de memória, assume particular relevância. É a partir dele que constrói as suas narrativas visuais, fundamentalmente através da pintura, mas também com recurso a outros meios como sejam o vídeo, a gravura ou a escultura. É esse, aliás, o caso da sua participação na Bienal. Partindo de uma investigação histórico-sociológica do território maiato – os característicos bordados, as gravuras medievais em pedra ou as icónicas gravuras neolíticas/calcolíticas de Ardegães, entre outros – expande o seu acervo de imagens e a partir dele produz novas pinturas e os baixos-relevos que se apresentam nesta mostra, a que se juntam trabalhos anteriores. Uma menção ao dispositivo expositivo escolhido para exibir os trabalhos de Marques: grandes painéis de dupla face, em que as obras se dispõem em conjuntos, sugerindo leituras individuais e, simultaneamente, coletivas e que, do ponto de vista formal, nos trazem reminiscências do Bilderatlas mnemosyne (1924-29) de Aby Warburg. Tendo em mente o conceito de partilha e das suas possibilidades enquanto instrumento de transformação, denominador comum de todo este certame, Miguel Ângelo Marques orienta uma oficina de desenho destinada a crianças do 1º ciclo.

Texto de Carla Santos Carvalho 

Abel Mota

A prática artística de Abel Mota (n.1999) é, por natureza, hedonista. O prazer do jogo com elementos da pintura, como a cor ou a composição, ressoa dos seus trabalhos, nomeadamente dos mais recentes que podemos classificar como paisagens. O gesto largo, espontâneo e virtuoso ou a paleta cromática vívida são uma presença constante nessas obras, muitas delas realizadas en plein air. Também essa forma de fazer é sinónima da ideia de fruição, da ideia de prazer, inextricavelmente ligadas ao modus faciendi de Abel Mota.

A esta Bienal, o artista licenciado em pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (em conjunto com a École Nationale Supérieure des Beaux-arts de Paris), traz-nos precisamente uma série de obras em que a questão da paisagem é central. Desde logo, paisagens minhotas de grande escala, resultado da sua atividade artística mais recente, mas igualmente paisagens maiatas, produzidas especificamente para a BACM.

Em 2021, Abel Mota co-fundou a associação cultural O Bueiro, e nesse ano foi distinguido com o prémio “AJ” da Fundação Millennium BCP.

Texto de Carla Santos Carvalho

Diogo Nogueira

O projeto artístico de Diogo Nogueira (n.1999) tem um carácter autoficcional, no qual reflexões e elementos autobiográficos se cruzam com uma investigação em torno de temas basilares da história da arte ocidental, concretamente dos seus mitos fundadores e da forma como eles se repercutem na contemporaneidade. O artista, licenciando em pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, refere-se à sua prática como uma “auto-mitologia” que pretende, simultaneamente, constituir-se como uma espécie de “mitologia queer”. Especificamente no caso da obra que se agora apresenta, Lutas são feitas fora de casa, senão fica tudo sujo, cujo meio primordial é a cerâmica – mas cujas origens são a pintura e o desenho – o artista usa como referência as gravuras rupestres de Ardegães, bem como alguns objetos cerâmicos datáveis da Idade do Cobre, (partes integrantes do sítio arqueológico, localizado em 2004, no âmbito da Carta Arqueológica do concelho da Maia) e, concomitantemente, todo um referente imagético contemporâneo, pessoal e coletivo, que se reifica nesse conjunto cerâmico, do qual emana uma narrativa necessariamente ficcional que interpela o visitante da Bienal. 

Diogo Nogueira é membro fundador do projeto O Bueiro (2021), e, atualmente, é artista residente no Clube de Desenho.

Texto de Carla Santos Carvalho

Afonso Rocha

No último ano, Afonso Rocha (n. 1999) tem vindo a desenvolver o projeto The Garden que se materializa num conjunto de meia centena de trabalhos, sobretudo pinturas e desenhos e, igualmente, fotografias e colagens, compreendendo duas vertentes: a paisagem e a figura humana. À BC23, o artista licenciado em pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (em conjunto com a École Nationale Supérieure des Beaux-arts de Paris), traz-nos as paisagens. E as paisagens de Afonso Rocha são fictícias, construídas no estúdio do artista a partir de representações fotográficas de paisagens captadas pelo próprio em diversos locais do norte do país – Maia incluída – mas, igualmente, recorrendo a uma seleção de obras da história da arte, de autores como Cézanne ou David Hockney. Desta conjugação de memória da pintura, mas simultaneamente de imagens fotográficas, nascem as representações ficcionais que aqui se mostram. Afonso Rocha é cofundador do projeto O Bueiro (2021) e integra o Proyecto MAP, tendo participado em exposições em Murcia e Buenos Aires. Em 2023 foi distinguido com o Prémio de Pintura D. Fernando II e com uma menção honrosa Innovate Grant.

Texto de Carla Santos Carvalho