Náhir Capêlo e Henrique Costa

 Fecha os olhos e vê.11. James Joyce citado em Georges Didi-Huberman, O que nós vemos, o que nos olha, trad. Golgona Anghel e João Pedro Cachopo, (Porto, Dafne, 2011), 9.

Um raio de luz atravessa o espaço arquitetónico e dá uma nova visibilidade ao jardim de inverno do Fórum. Dessa intervenção transformadora, imaginada por Náhir Capêlo (n. 1994), emerge uma paisagem enformada pela instalação sonora criada pela artista em parceria com Henrique Costa (n. 1995). E se a paisagem é, por definição, um construto humano, nesta circunstância é-o duplamente pois os seus limites são as paredes de betão do edifício. A arquitetura controla e define o espaço que é aqui o lugar da natureza, um lugar que simula um outro lugar, aquele em que a natureza, alheia à intervenção humana, se regula a si mesma. Sobre o processo, afirma Náhir Capêlo:

Após algumas visitas ao espaço notámos características sonoras próprias da situação de condensação. As transformações da matéria para estado líquido produzem esporádicos sons de gotas a cair sobre as grandes folhas das plantas tropicais. Estes ritmos têm sido a base do ambiente sonoro que estamos a produzir, cruzando-os com alterações feitas a partir de diversos sintetizadores.

O questionamento das relações entre o mundo natural e a tecnologia está igualmente presente nos trabalhos que se exibem na rede de mupis da cidade, resultantes de um projeto de investigação intitulado Ela não se move: o que escapa à história também existe realmente. Aí, Capêlo problematiza a dicotomia natureza/cultura e a forma como ela é mediada pelas tecnologias digitais. Se, inicialmente, o projeto foi apresentado enquanto instalação vídeo, aqui são os frames desse mesmo vídeo que se mostram.Num outro trabalho, o vídeo A imensidão das coisas (Fez, Marrocos, 2022), 3’ 48’’, um ligeiro movimento panorâmico introduz-nos a um típico casario magrebino. Os gestos de uma jovem rapariga captam a atenção do espetador. A imagem fixa-se num corpo em movimentos improvisados, um corpo livre que explora a relação consigo mesmo e com os objetos que o rodeiam. Náhir Capêlo faz aqui um exercício sobre a linguagem enquanto instrumento de continuidade entre o humano e o não-humano, sobre a linguagem enquanto forma de expressão não exclusivamente verbal ou sequer humana, sobre a linguagem enquanto ferramenta de emancipação.

Texto de Carla Santos Carvalho

Maria Paz e Leonor Arnaut   

A liberdade é um mistério,
todo dia se decifra
todo dia se disfarça11. Tom Zé, “Sobre a liberdade”, faixa 3 em O jardim da política, Palavra Cantada Produções Musicais, 1998, CD.

O trabalho de Maria Paz (n. 1998) é sobre a liberdade, sobre a emancipação. A emancipação do corpo, a liberdade de género, a liberdade de ser. E é sobretudo na escultura, em objetos cerâmicos ou de pedra, que se materializam as suas formas híbridas fantásticas, de cariz abstratizante, que, no entanto, não parecem desligadas de uma certa ideia de pintura. Esse fluxo contínuo entre a pintura e a escultura, presente no corpus de trabalho da artista é, por exemplo, observável na obra bandeira, pintura sobre tecido, cuja dimensão substancial e a forma como se dispõe no espaço acaba por lhe conferir um caráter para além do bidimensional. A relação torna-se mais evidente em trabalhos como as monstras, nos quais a pintura se torna efetivamente tridimensional. Aí, talvez mais do que em qualquer outro das peças que se apresentam nesta exposição, vêm à superfície os questionamentos de Maria Paz: a afirmação do corpo emancipado, intersexual, nutrício, vital, desmultiplicado, livre. É, de resto, a partir desta instalação, composta por criaturas orgásticas, que Maria Paz constrói um diálogo com a arte vocal de Leonor Arnaut (n. 1996), que se materializa numa instalação sonora e num concerto performativo que Arnaut fará no primeiro dia da Bienal. Um diálogo que é também um convite à transmutação dos corpos e dos sonhos para um novel território habitado por seres fluídos e livres.

Texto de Carla Santos Carvalho

Tiago Loureiro

O vermelho é a cor primordial, a cor arquetípica, a primeira dominada e reproduzida pelo ser humano, como bem nos lembra Michel Pastoureu na sua história das cores11. Michel Pastoureau, Vermelho, trad. José Alfaro, (Lisboa, Orfeu Negro, 2019), 7. . E é de vermelho (e suas nuances), essa cor que a ciência oitocentista haveria de classificar como primária22. Michel Pastoureau, Vermelho, trad. José Alfaro, (Lisboa, Orfeu Negro, 2019), 155. , que se veste parte do fazer artístico de Tiago Loureiro (n. 1995). Mestre em Práticas Artísticas e Contemporâneas pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Loureiro constrói no território expositivo da Bienal uma instalação, que é simultaneamente um espaço performativo. Uma estrutura triangular recoberta de camilhas vermelhas, enormes e pesadas toalhas circulares, da qual ressoam ideias de escultura, mas sobretudo de múltiplas possibilidades de forma e movimento, por isso, necessariamente, de teatralidade. Recorrendo a objetos e figurinos inspirados no seu quotidiano, o artista cria personagens que se movem num universo místico, ritual e, por maioria de razão, onírico. No decurso da Bienal, as possibilidades dos corpos em movimento enquanto transformadores do espaço são exploradas pelo artista em momentos performáticos que apelam à participação da comunidade.

Texto de Carla Santos Carvalho

Miguel Ângelo Marques

Se é verdade que é recorrente um artista ir construindo o seu arquivo pessoal imagético – veja-se como ainda recentemente foram descobertos dois cadernos de desenhos de viagens, de Eugène Delacroix, que desvelam a influência desses esboços e anotações no processo de trabalho do pintor oitocentista francês11. Eugène Delacroix, Journey to the Maghreb and Andalusia, 1832: The travel notebooks and other writings, trad. Michèle Hannoosh, (Pennsylvania, Penn State University Press, 2019). – é também certo que a importância desse arquivo se manifesta de modo diferenciado nas práticas artísticas. No caso de Miguel Ângelo Marques (n. 1994), artista cujo corpus de trabalho assenta na pesquisa de relações entre imagem e signo, esse arquivo, no caso constituído por um vasto reportório imagético pessoal e coletivo, intimamente ligado à noção de memória, assume particular relevância. É a partir dele que constrói as suas narrativas visuais, fundamentalmente através da pintura, mas também com recurso a outros meios como sejam o vídeo, a gravura ou a escultura. É esse, aliás, o caso da sua participação na Bienal. Partindo de uma investigação histórico-sociológica do território maiato – os característicos bordados, as gravuras medievais em pedra ou as icónicas gravuras neolíticas/calcolíticas de Ardegães, entre outros – expande o seu acervo de imagens e a partir dele produz novas pinturas e os baixos-relevos que se apresentam nesta mostra, a que se juntam trabalhos anteriores. Uma menção ao dispositivo expositivo escolhido para exibir os trabalhos de Marques: grandes painéis de dupla face, em que as obras se dispõem em conjuntos, sugerindo leituras individuais e, simultaneamente, coletivas e que, do ponto de vista formal, nos trazem reminiscências do Bilderatlas mnemosyne (1924-29) de Aby Warburg. Tendo em mente o conceito de partilha e das suas possibilidades enquanto instrumento de transformação, denominador comum de todo este certame, Miguel Ângelo Marques orienta uma oficina de desenho destinada a crianças do 1º ciclo.

Texto de Carla Santos Carvalho 

Mathias Gramoso com Ivy Lee Fiebig e Pedro Moraes

A preocupação com as questões ecológicas, com as alterações climáticas, atravessa a prática artística de Mathias Gramoso (n. 1990), materializando-se em intervenções e instalações no espaço público e em galerias, um pouco por toda a Europa. Há um outro traço transversal ao trabalho do artista franco-português, o facto de habitualmente se desenvolver em processos colaborativos. Assim acontece na Maia. A instalação I died once, I can die twice (2023) constitui-se como um corredor/túnel negro, de aproximadamente 15m quadrados, com duas entradas, cujo solo é recoberto por cinzas e areias provenientes de incêndios florestais recentemente ocorridos em Portugal. Uma antinómica versão An die Freude, a ode à alegria de Schiller, parte integrante da Nona de Beethoven, confronta sensorialmente o espetador, ao mesmo tempo que a luz difusa reforça a ideia de cenário pós-apocalíptico. As sonoridades perfeitas do compositor alemão entrelaçam-se com registos sonoros dos ventos Iónicos captados por Ivy Lee Fiebig (n. 1992) enquanto navegava no Mediterrâneo. A instalação sonora Lodos & Poyraz, os ventos a que a tradição popular, com raízes na mitologia clássica, também chama Ventos das bruxas (por provocarem alterações físicas e psíquicas nos seres humanos), insere-se numa prática que tem conduzido a artista alemã a territórios de pesquisa e construção de atmosferas psicológicas, microclimas reativos e espaços de experimentação em que se equacionam vida e sustentabilidade. Questões que de outra forma estão igualmente presentes no trabalho do artista paulistano, Pedro Moraes (n. 1990). A-B é uma instalação de 2m x 1m, que aspira o pó do presente, o pó invisível remanescente da ação humana e filtra-o, para o transformar em arte. Só que essa transmutação resultante do processo de filtragem das partículas do ar, só se torna possível pela passagem do tempo, é ela que reificará os pigmentos em “pintura”.  É nesta perceção de contrastes e paradoxos que acontece o trabalho de Pedro Moraes. Gramoso, Fiebig e Moraes vivem e trabalham em Berlim.

Texto de Carla Santos Carvalho

Filipa Valente

O projeto de Filipa Valente (n. 1999) Campos Magnéticos: Rede informal de espaços geridos por artistas no Porto, entre 1999 e 2022, propõe-se analisar criticamente “a problemática da relação entre a prática curatorial independente autogerida por artistas e o contexto expositivo institucional e respetiva legitimação simbólica”. A artista/investigadora e curadora identificou e mapeou os espaços geridos por artistas na cidade do Porto nas últimas décadas, ao mesmo tempo que foi registando o percurso dos artistas que por aí passaram e, por maioria de razão, observando a cidade enquanto ser vivo em permanente mutação. O resultado dessa investigação desdobra-se em múltiplas plataformas. Desde logo, num site “arquivo-vivo”, cujo propósito se enuncia a três níveis: identificar, documentar e divulgar. A participação de Filipa Valente nesta Bienal ocorre em duas dimensões: uma delas relacionada com a investigação Campos Magnéticos, primeiro em formato expositivo de representação gráfica da investigação, mas também em vídeo, email arte e uma publicação (no caso, o mapa resultante do projeto que permite ao espetador uma deriva pela cidade, fazendo o reconhecimento dos espaços mencionados); e, igualmente, na vertente residência artística, no âmbito da qual recorre a técnicas artesanais ancestrais como o ponto de Arraiolos, o bordado ou a tecelagem como forma de representação de espécies da fauna e flora lusitânica, para desenvolver um projeto que reflete sobre uma questão bem contemporânea, a problemática dos ecossistemas ameaçados, como consequência da ação humana. Como o curador José Maia gosta de afirmar, o trabalho de Filipa Valente presente nesta BACM “tal como a pista de dança [espaço central desta edição], é uma utopia realizável”. 

Texto de Carla Santos Carvalho

Sofia Leitão

O sangue, a bílis amarela, a bílis negra e a flegma: os quatro humores corporais constitutivos da teoria clássica dos temperamentos, do Corpus hippocratium, humores dos quais, acreditavam aos gregos, dependia o equilíbrio/desequilíbrio do humano, são aqui materializados nas esculturas de Sofia Leitão (n. 1977). Mas esses fluídos humanos, ao contrário de provocarem repulsa, apresentam-se antitéticos ao olhar do espetador como refulgentes e vívidos objetos preciosos, aos quais não será alheia a ideia de joia (palavra cuja origem remonta ao francês antigo joie, significando artefacto de valor, fonte de prazer). Recorrendo a materiais como as contas de acrílico e de vidro ou as lantejoulas, a artista opera essa transformação, conferindo a estes humores uma ressignificação, uma nova axiologia. De resto, esta ideia de transformação, de metamorfose, se se quiser, é inerente ao trabalho de Sofia Leitão, consubstanciada aqui, não só nas peças já referidas, mas em todas a que neste palco se apresentam, quer esse palco seja o chão, quer sejam os plintos onde repousam outras peças, como é o caso das caveiras, vanitas sinónimas da derradeira transformação. Processo que duplamente se reafirma na série Transmutação, um título que por si só é todo um enunciado da leitura que vimos propondo.

Texto de Carla Santos Carvalho

Yasmine Moradalizadeh

Yasmine Moradalizadeh (n.1999) é luso-iraniana, artista multidisciplinar e arte educadora. A ascendência cruzada assim enunciada, portuguesa/iraniana, católica/muçulmana, porque é a partir dela que se constrói toda uma poiética. Incidindo sobre questões de identidade, território, arquivo e memória e através de meios como a fotografia, o vídeo ou a performance, a artista recorre a vestígios autobiográficos como forma de autorrepresentação. Esta prática multidisciplinar combina vários domínios: as artes plásticas, em que Moradalizadeh é licenciada pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, mas também a dança urbana que pratica há década e meia ou o curso de piano que realizou no Conservatório Regional de Música do Médio Ave. No âmbito da recente demanda identitária que tem vindo a realizar – quer individualmente, quer em parceria com a sua irmã, a também artista Rebecca Moradalizadeh – Yasmine pesquisou, entre muitos outros, o processo de tingimento de tecidos no Irão e a aprendizagem de práticas artesanais como o bordado, saberes tradicionalmente transmitidos de avós para netas. No espaço expositivo apresenta-se a instalação Heritage, que surge precisamente na sequência de um trabalho sobre a herança têxtil familiar, após uma viagem realizada ao Irão em 2019. Estes saberes ancestrais da antiga Pérsia e simultaneamente do atual Irão, são transpostos igualmente para o território da Bienal através um workshop realizado pela artista em colaboração com as mulheres da Associação Artes Criativas da Maia, bem como uma oficina/debate com estudantes do ensino secundário. Neste espaço aberto ao outro, neste espaço de partilha em que se afirma o poder transformador do conhecimento e que atravessa todo o espírito da Bienal, emerge naturalmente uma forma de ativismo, que neste caso não poder ser separada quer de um questionamento sobre o papel da mulher no mundo contemporâneo, quer de uma ideia de resistência à islamofobia.

Texto de Carla Santos Carvalho 

Iñaki Aires

Iñaki Aires (n. 1996) vive e trabalha no Porto, cidade a partir da qual desenvolve um modus faciendi assente sobretudo na tatuagem, essa arte milenar de transformação do corpo. Foi na portuense escola artística Soares dos Reis que Aires se iniciou nesta prática, tendo vindo a colaborar, desde então, com estúdios de tatuagem um pouco por todo o mundo. Neste percurso foi construindo um multifacetado arquivo imagético, que integra a sua iconografia, bem como outros trabalhos gráficos e fotográficos, que usa como base quer para a elaboração de publicações de artista, quer para a transposição para os corpos. 

Na Maia, em jeito de performance, procede à tatuagem de um corpo no dia inaugural de uma Bienal que se afirma precisamente como sendo de formação e transformação, de partilha e debate, convocando várias linhas de pensamento crítico, desde logo, a da identidade. Ora, se o questionamento do corpo em transformação é de alguma forma transversal a muitas práticas artísticas em presença, ele é-o indubitavelmente quando pensamos em tatuagem. A partir do seu arquivo imagético, Iñaki Aires, também aqui trará um conjunto de colagens, realizadas a partir de imagens retirada de antigas enciclopédias, desde o século XVI até aos nossos dias, que desprovidas do seu contexto original e num exercício de alguma forma abstratizante são aqui justapostas e sobrepostas adquirindo novos significados.

Texto de Carla Santos Carvalho 

Mariana Barrote

Caudal rítmico no leito opalino (2023), essa nave do futuro da qual ecoam tempos passados, é peça central, do conjunto de trabalhos que Mariana Barrote (n. 1986) apresenta na BACM. Doutoranda em Artes Plásticas na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, a artista desenvolve uma pesquisa que reflete sobre as políticas de representação do corpo a partir dos seus processos evolutivos e sistemas de classificação. O corpo e as suas transformações ancoradas em memórias despoletadas por gestos, gestos iterados no espaço e no tempo, o corpo no seu campo expandido. É dessa matéria que se faz essa nave-sarcófago opalina, encapsulando vestígios de um corpo só imaginado – uma máscara, uma braçadeira, um par de mãos entrelaçadas repousam no topo do artefacto. O tempo suspenso é interrompido por um conjunto de desenhos cravados a goiva em folha de silicone, observáveis nas faces laterais da obra, bem como nos já referidos vestígios. Sobre eles afirma a artista: “Como a nossa pele, onde se inscreve um tempo anterior ao da nossa forma, literalmente, a superfície da peça está inscrita, na sua maioria. As paredes têm relevos com desenhos de sequências de corpos e movimentos, muitos deles partiram da observação do arquivo digital que compilei. Todos remetem ao corpo, à sua replicação, desmultiplicação”.  Se por um lado esta peça, bem como as colunas que a ladeiam, nos remetem para a ideia de sepulcro, de rito funerário, não é despiciendo o facto delas, simultaneamente, emanar a luz, sinónimo de vida. É neste fluxo entre o que foi/o que é/o que virá a ser que a obra acontece. Nesta exposição mostra-se também uma série de desenhos a tinta-da-china à qual está subjacente a mesma lógica de repetição e transformação que povoa Caudal…; igualmente se apresentam três vídeos, parte de uma série intitulada Tour de Main, expressão francesa que suscita uma duplicidade interpretativa que é uma recorrência do trabalho de Barrote.

Texto de Carla Santos Carvalho