No último trimestre de 2022, o artista brasileiro Gustavo Silvamaral (n. 1995) desenvolveu no âmbito de uma residência artística, no Porto, o projeto Santo do Pau Oco, refletindo sobre a problemática da mineração aurífera no período colonial e as suas consequências para o território brasileiro, tendo como referencial poético a figura de D. Pedro I (D. Pedro IV, de Portugal) – desde logo, a sua importância no processo de independência do Brasil e simultaneamente a ligação à cidade do Porto. É precisamente a partir desse projeto que o artista cria as instalações, Golden Shower – Altar para um Santo do Pau oco (2022) e O grande roubo (2022) que se apresentam na BACM. A primeira, composta de esculturas de barro, papel, madeira e bomba de água, tem como elemento central uma representação do rei/imperador à qual foi subtraído o coração (dela ressoa, aliás, um certo anacronismo: a memória pueril do “soldadinho de chumbo” que já não pode hoje ser de chumbo, aqui general sem exército e sem coração), o polémico coração “deixado no Porto”, enquadrado por esse arco triunfal amarelo dourado, aludindo à talha dourada. Dois pequenos anjos ladeiam a figura do rei e sobre ele largam os seus íntimos fluidos, nesse movimento que o artista designa por golden shower. Ora, é impossível não invocarmos aqui quer a obra Self portrait as a fountain (1966-67) de Bruce Nauman, em que “a problemática da narração do eu está inextricavelmente entrelaçada com a autocrítica estética e a problematização dos meios artísticos”11. Carla Santos Carvalho, “Autoficcção: uma ferramenta heurística de produção e receção crítica da obra de arte”, Dissertação de mestrado não-publicada, (Universidade do Porto, 2022), 31., que, por sua vez, é inequivocamente uma citação da Fonte de Marcel Duchamp. Silvamaral transporta-nos, portanto, numa espiral mise en abyme, quer nesta, quer na instalação intitulada O grande roubo, composta por coração de porco em recipiente de vidro, suspenso como se pairasse sobre os comuns mortais e, em fundo, outra vez, o ouro do Brasil, curiosamente representado por cobertores isotérmicos de emergência que, por antítese, não podemos deixar de associar à hodierna tragédia dos refugiados no Mediterrânio. O coração, aqui numa quase literalidade em relação ao real, surge-nos dentro desse recipiente translúcido, com duas alças, em jeito de mala que se transporta para qualquer lado, que se transporta para outra realidade. O ouro desta instalação está intrinsecamente ligado ao amarelo, a cor primordial da prática artística de Silvamaral. Como defende Pastoureau: “Escrever a história do amarelo no Ocidente é também…escrever em parte a do ouro, fértil e difícil, tantos são os domínios em que intervém e os problemas que o seu estudo levanta”22. Michel Pastoureau, Amarelo, trad. José Alfaro, (Lisboa, Orfeu Negro, 2021), 13.. Questionar os limites da pintura, no fundo, é quase sempre disso que trata, quando consideramos um corpus de trabalho a que está subjacente uma ideia de pintura, independentemente do medium que é utilizado pelo artista brasileiro.
Texto de Carla Santos Carvalho