Fátima Vieira

Fátima Vieira é Vice-Reitora da Universidade do Porto (Cultura, Museus e U.Porto Edições). Professora Associada com Agregação da Faculdade de Letras, onde ensina desde 1986, foi membro do Conselho Geral da Universidade do Porto de 2012 a 2014 e pertenceu a diversos conselhos e comissões científicas desde que se doutorou, em 1998. Foi Diretora do Departamento de Estudos Anglo-Americanos de 2008 a 2010 e Presidente da Utopian Studies Society / Europe de 2006 a 2016. É atualmente a Coordenadora do polo do Porto do CETAPS – Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies, financiado pela FCT.

Bug Snapper

Logo nos planos iniciais de Greenhouse (2023) – título de um vídeo realizado para uma música homónima – transparece a influência formal que o cinema experimental do norte-americano Stan Brakhage (1933-2003) exerce neste exercício de Bug Snapper, projeto a solo do músico, produtor, DJ e artista multimédia Rui Santos (1998). Se pensarmos em alguns planos da curta-metragem The wonder ring (1955), como é o caso dos travellings de câmara ao ombro, só para dar um exemplo, essa marca, aliás reclamada pelo artista portuense, torna-se evidente. Claro que a imagética também essencialmente abstrata de Bug Snapper é um produto do seu tempo. Do ponto de vista visual, o artista recorre a uma mescla de imagens digitais de satélite e imagens geradas por inteligência artificial, com o propósito de acompanhar uma composição musical eletrónica. O trabalho tem como referência estética, explica o artista, a glitch art, ou seja, a identificação de falhas, de erros, de distorções e a sua incorporação propositada nas sequências, gerando movimentos rápidos abstratizantes. Este trabalho Bug Snapper exibe-se na mostra de vídeo. O artista fará igualmente uma performance enquanto músico e DJ.  Se o seu trabalho na banda Cat Soup se centra no rock instrumental e no pós-rock, já o percurso que vem percorrendo a solo – que deu origem a dois EP, um single e ao álbum Neptune Recreation Center (2022), tem uma essência eletrónica, com faixas mais rítmicas e dançáveis, outras próximas da ambient music, cujo elemento comum é uso de sintetizadores.

Texto de Carla Santos Carvalho

Clara de Cápua

Duas projeções simultâneas, duas narrativas paralelas convergem para um desfecho anunciado. O movimento perpétuo das marés, a passagem do tempo ou lembrando o que nos ensina Didi-Huberman, “diante da imagem estamos sempre diante do tempo”11. Georges Didi-Huberman, Diante do tempo, trad. Luís Lima, (Lisboa, Orfeu Negro, 2017), 9., pois perante a imagem passado e presente não cessam de se reconfigurar, não cessam de se desmultiplicar. Numa das imagens em movimento que agora observamos, um corpo abandona-se à beira-mar e há de ficar lentamente submerso pela subida da maré, até se desvanecer nas águas atlânticas de Coruripe; na outra que corre simultânea, à medida que a maré baixa, uma pequena embarcação de pesca, sem mestre, qual navio fantasma, vai acostando até encalhar ou “dar em seco”, como diriam os pescadores deste lado do atlântico. Este exercício fílmico, intitulado Naufrágio (2021), da autoria de Clara de Cápua (n. 1984) incorpora os temas recorrentes da artista brasileira. É com ele que participa na Bienal, concretamente na mostra de vídeo. Atualmente doutoranda da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Clara de Cápua é licenciada em Artes Cénicas e Mestre em Artes. A sua práxis desenvolve-se precisamente nestes dois domínios: as artes performativas e as artes visuais, explorando questões de temporalidade, as tensões ausência/presença, bem como as pulsões narrativas que emanam da imagem. Recorre a diversos mediums como o desenho, a gravura, a pintura ou o vídeo.

Texto de Carla Santos Carvalho

Henrique Apolinário & Sirte

Artista transdisciplinar, ator, músico, performer, educador, engenheiro de som. É longa a lista de práticas (podia ser mais longa, talvez) que Henrique Apolinário (n. 1994) tem vindo a desenvolver na última década. De todas elas ressoam denominadores comuns. Por um lado, o questionamento das correlações entre a performatividade dos sons e dos corpos, por outro, e do ponto de vista especificamente musical, o enfoque no desenvolvimento de técnicas experimentais de composição, improvisação e direção musical. Numa afirmação que é todo um enunciado, o artista refere que a sua práxis é uma busca reiterada de “estados psicossomáticos imersivos, procurando uma ligação anímica dos corpos através de pulsações partilhadas, sinestesia e comunicação não-verbal”. Cruzamentos, interseções, apropriações, improvisações, experimentações, conexões, afinidades. De tudo isto se fez o concerto performance em que Apolinário se apresentou com um novo projeto.

O ensemble Sirte é dirigido pelo próprio, que é também violinista, contando com Beatriz Rola, em viola de arco, António Feiteira na percussão e David Machado na eletrónica e processamento de áudio em tempo real. O concerto, em que o ensemble se propôs amplificar as fontes acústicas “com precisão sónica”, transformando o som num instrumento que se acrescenta aos demais e, simultaneamente, funciona como peneira de todos os outros, apresentou sonoridades “hipnóticas, densas, repetitivas” abrindo um espaço à possibilidade da dança.

Texto de Carla Santos Carvalho

Hotelier e Paula Lopes

Não por acaso, o espaço Hotelier instalou-se há uns anos na portuense Rua de Anselmo Braamcamp, um epicentro de projetos artísticos independentes e de pensamento livre. Definindo-se como um “atelier multiversal de experimentação artística contemporânea”, orientado para a reutilização de materiais, o projeto Hotelier liderado por Paula Lopes muda-se para a Maia, no decurso desta edição da BACM. Constituindo-se, nesta circunstância, tal como acontece no espaço-mãe, como um local de partilha, experimentação, reflexão crítica e aprendizagem – a par, aliás, do espaço A Leste – e afirmando-se, igualmente, como casa de acolhimento de projetos artísticos com práticas consonantes. A experiência da “piscina seca”, sala do espaço da Anselmo Braamcamp, cujos pavimento e paredes, parcialmente pintados de azul como se se tratasse de uma piscina, – ironia mordaz da lógica de consumo capitalista, a que não dispensa o “hotel com piscina” –, replica-se na Maia. Aqui, com recurso a materiais reciclados, desperdícios, aliás. Em fundo, uma paisagem sonora que é, de algum modo, sinónima de liberdade, sons captados enquanto Paula Lopes aprendia a nadar.  Será esse o espaço privilegiado de experimentação, acolhimento de concertos e performances, de projetos artísticos diversos. No mesmo dia em que Inês Tartaruga e Xavier Paes aí se apresentam em concerto, e num mesmo contínuo conceptual, de futuros possíveis, Paula Lopes convida-nos para uma performance gastronómica, em linha com o trabalho que vem desenvolvendo no Hotelier: experiências gastronómicas de aprendizagem e partilha, de raiz vegan, sempre com a reutilização em mente: “Interessa-me a tentativa e erro e, essencialmente, a imperfeição, mais do que o seu contrário”, diz-nos a criadora. As suas explorações gastronómicas, ativadas pela participação do espetador, são enunciados de um modo de estar no mundo, enunciados de um modo diferente de pensar o mundo: ecológico, sustentável, escutando as respirações da terra.

Texto de Carla Santos Carvalho

José Filipe Alexandre

José Filipe Alexandre (n. 1997), mestre em Design de Comunicação, tinha como horizonte a conceção da identidade gráfica da BACM 2023, a Bienal que vem caminhando e que caminhando se transforma, caminhando se desmultiplica em possíveis caminhos futuros. A imagética que resultou do seu trabalho reflete essa multiplicidade constitutiva. Por um lado, mergulha nas formas tradicionais, nos modos de fazer ancestrais, na manualidade, – especificamente, nos bordados maiatos e minhotos, cuja influência, aliás, reconhecemos nas práticas de vários artistas que nesta circunstância se desvelam –, mas que simultaneamente incorpora o pixel, esse menor elemento-imagem, que inevitavelmente associamos a uma contemporaneidade digital, iterada, inelutável. Com algumas particularidades. No espaço expositivo os textos de paredes são aqui substituídos por imagens, quase murais, criados por José Filipe Alexandre. Desde logo, o que recebe o visitante na entrada nascente do edifício, que nos remete para uma representação/projeção do território da Maia, mas igualmente para um conjunto de outras imagens que, a seu modo, fornecem pistas ao espetador acerca dos diferentes núcleos e suas temáticas da exposição no Fórum, como sejam, a paisagem, a manualidade, o arquivo/memória, entre outros. Esta identidade gráfica concebida pelo designer vai disseminar-se pelo espaço público, pois será também observável na rede de mupis da cidade.

Texto de Carla Santos Carvalho

Mariana Camacho

Há algo em nós que estremece quando escutamos, com o corpo todo, a voz e suas plasticidades de Mariana Camacho (n. 1993). Da música erudita ao jazz, da pop à world music, a cantora e performer madeirense move-se livre entre e tipologias musicais e formas de fazer. Fundindo, criando, mesclando, improvisando, transformando. A somar a múltiplas, ecléticas e transdisciplinares experiências colaborativas, em duos, em trios, em coros, a artista criou, em 2019, a sua “banda de uma mulher só”, na qual desenvolve uma pesquisa em torno da improvisação, da intertextualidade, da exploração vocal e da composição em tempo real, recorrendo a loops e teclados. Neste projeto one woman band, Mariana Camacho convoca amiúde o universo da música tradicional portuguesa, que incorpora e transforma, devolvendo-nos uma paisagem sonora infinitamente mais vasta. Em vésperas de lançar um álbum a solo, a cantora apresenta-se em concerto no pequeno auditório, a 23 de setembro. 

Texto de Carla Santos Carvalho

Mariana Couto

Mariana Couto (n. 2001), designer de interiores, foi desafiada pelo curador José Maia a criar alguns dos dispositivos expositivos da BACM 2023 (sobretudo nos casos em que os artistas não criaram soluções próprias). Mais do que desenvolver estruturas expositivas para uma determinada mostra, pretendia-se sobretudo imaginar soluções que permitissem uma efetiva relação entre a obra e o observador e que esse trabalho, que convoca para o espaço expositivo outros materiais, sobretudo reciclados, que acrescenta camadas aos trabalhos que são exibidos, estabelecesse, uma linha de continuidade entre o conceito de uma Bienal que caminha em direção ao futuro, com os pés assentes no presente, as obras dos artistas que a consubstanciam e os espetadores que, finalmente, a ativam. Nesse sentido, Mariana Couto desenhou dispositivos para a exposição de trabalhos de artistas e coletivos como, Pedra no Rim, Carlos Trancoso e April ou Diogo Nogueira, Sofia Leitão e Mariana Barrote. Estruturas diversas, que dialogam obviamente com o espaço, mas que têm, essencialmente, a obra e as formas de expandir as relações entre a obra e o espetador.

Texto de Carla Santos Carvalho

Nika e Vítor Moreira com Júlia de Carvalho Hansen

Entre o suspiro desejante e a angústiado que não nos pertence, 
o futuro é dos entendidos: os que duvidam enquanto sabem.11. Júlia de Carvalho Hansen. “Como se faz um futuro?”, texto para a Bienal de Arte Contemporânea da Maia (Maia, 2022).

Júlia de Carvalho Hansen (n. 1984), poeta, astróloga e editora nascida em São Paulo na década em que se afirmou o pós-modernismo22. Jean-François Lyotard publica em 1979 La Condition postmoderne: rapport sur le savoir e, em 1988, Le Postmoderne expliqué aux enfants: Correspondance 1982-1985. Frederic Jameson faz publicar, em 1991, Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism (livro que era já o desenvolvimento de um artigo publicado na New Left Review, em 1984). São apenas alguns exemplos de pensamento crítico produzido nessa década e que viriam a influenciar as gerações vindouras., escreveu para a Bienal o ensaio poético Como se faz um futuro?, no qual problematiza algumas das questões que vêm assombrando a geração herdeira do pós-modernismo: humano versus natureza ou a vida em um mundo saturado de tecnologia. No seu caso, também especificamente as formas como a astrologia se entrelaça com as existências:

O cerne de um búzio carrega mais mensagens
do que eu e você nos nossos históricos de whatsapp sem dúvida
uma trepadeira escalando um muro sabe melhor o que fazer.
33. Júlia de Carvalho Hansen. “Como se faz um futuro?”, texto para a Bienal de Arte Contemporânea da Maia (Maia, 2022).

Nika (n. 2001) e Vítor Moreira (n. 1997), artistas multidisciplinares, com uma prática sobretudo no domínio do audiovisual e multimédia, partem precisamente do texto de Júlia Carvalho Hansen para traçarem o seu próprio “mapa astral”. A partir deste ensaio poético-ativista da escritora brasileira, a dupla criou uma obra – vídeo mappping projetado numa esfera suspensa que, aliás, dialoga com outras esferas presentes no espaço expositivo – que reúne um conjunto de imagens de diferentes proveniências cujo denominador comum é a água. A água, defende Hansen, de que precisamos para fazer futuro.

Texto de Carla Santos Carvalho

Hugo Adelino

Numa edição da Bienal em que a ideia de transformação e desmultiplicação do eu é de alguma forma transversal às práticas artísticas que nela se desvelam, não deixa de ser assinalável o facto do percurso profissional e, necessariamente, de vida de Hugo Adelino (n. 1985) ter experimentado uma mudança radical em 2016, quando optou por tornar-se fotógrafo freelancer em vez de seguir o caminho expectável após a licenciatura em optometria e ciências da visão. No fundo, é de uma visão que se fala quando se pensa no trabalho fotográfico que realiza, mas neste caso, de um olhar perspetivado sobre o mundo em que vive. E é desse olhar, em duas dimensões, que se faz a sua participação na Bienal. Primeiro na qualidade de fotógrafo oficial das exposições e das performances para o catálogo do certame, mas, igualmente, revelando-nos um olhar mais subjetivo, mais livre, se se quiser, materializado num conjunto de imagens fotográficas a propósito do universo da Bienal e que serão exibidas na rede municipal de mupis.

Texto de Carla Santos Carvalho